Pingo de Fortaleza, Abidoral Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel e Yrruã Brito, em destaque sob a regência do maestro Renato Brito, no Cineteatro São Luiz. 12/5/24. Foto: Joanice Sampaio/Divulgação |
A Suite do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, de Pingo de Fortaleza, Rosemberg Cariry e mais de 50 outros artistas do Cariri, espetáculo que estreara na última sexta-feira, 10/5, em Juazeiro do Norte e passara pelo Crato no sábado, chegou a Fortaleza em uma apresentação histórica na noite deste domingo. Os aplausos de pé ao final do espetáculo, confirmavam que, assim como ocorrera nas apresentações na região sul, o musical, composto por sete movimentos e por sete textos brilhantemente interpretados por João do Crato, conseguiu criar uma forte conexão emocional com o público, que compareceu em bom número, mesmo em pleno Dia das Mães.
No letreiro acima das portas do Cineteatro São Luiz, o anúncio da Suite do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e de seus idealizadores, Pingo e Rosemberg, autores das músicas e, na verdade, anfitriões de tantos artistas: o Coral da Universidade Federal do Cariri, com 30 integrantes, e o Sexteto de Cordas da Vila da Música. Todos regidos pelo maestro Renato Brito, conduzindo os arranjos assinados pelo cearense radicado em Brasília Ocelo Mendonça. Os instrumentistas convidados: Igor Ribeiro e Ricardo Pinheiro na percussão, o professor Weber dos Anjos na viola portuguesa (ou viola arcaica) durante os movimentos da suite e também no fundo musical para as falas de João do Crato, o acordeonista Jair Dantas. E mais de 10 intérpretes convidados, entre representantes de várias gerações e nomes emblemáticos da música do Cariri para o Ceará, para o Brasil.
A presença de tantos/as artistas do Cariri em Fortaleza, algo tão especial e infelizmente tão raro, constitui, por si, um encontro histórico, em um estado que ainda precisa construir pra valer ações de circulação artística e cultural entre suas próprias regiões, que parecem ser países diferentes, tal a falta de caminhos para essa presença, esse intercâmbio, esse exercício de conhecer e reconhecer. Quem estava no São Luiz se sentiu privilegiado por assistir a um momento especialíssimo.
O espetáculo ganhou um impulso a mais com a sonorização de Airtinho Montezuma e a direção de palco de Mateus Coruja, que foram ao Cariri, reforçada por Sandro Levi e pela equipe e pelos equipamentos do Cineteatro São Luiz, inaugurado em 1958 e hoje, para muitos, o mais belo cinema de rua do País. A iluminação assinada por Tatiana Amorim, que já se destacara nas apresentações no Interior, ganhou mais recursos no cineteatro.
O figurino de Tieta Pontes e Patrício Barros para os artistas evocava os trajes do homem do campo, do sertão, da serra, da chapada, com os coralistas de amarelo, os instrumentistas convidados vestindo azul, o Sexteto de Cordas em roupas marrons, os cantores e as cantoras em destaque trajando branco. O cenário é de Vlamir de Sousa e a arte-base do projeto, da jovem artista juazeirense Mellyssa Bezerra. A produção, de Pingo, Erivaldo Casemiro, Papinha Rodrigues, Arnóbio Santiago. Assessoria de comunicação de Joanice Sampaio e Paulo Rossi. Entre vários outros técnicos, produtores, trabalhadores/as da cultura envolvidos/as, em cada cidade.
Na área dos camarins do Cineteatro, abaixo do palco, instantes antes de se iniciar a apresentação, uma roda de agradecimento, oração e cânticos. E uma palavra do grande arregimentador do espetáculo, Pingo de Fortaleza: "Estamos aqui de alguma forma, chegamos aqui de alguma forma. Nada acontece por acaso. Cada um que compõe esse espetáculo se encontrou e encontrou também um coletivo, que abraçou essa ideia. Eu sou sempre pleno de gratidão. Temos que agradecer pelas oportunidades que a gente tem e que também cria. Vamos fazer um espetáculo numa casa de excelência, uma casa muito boa, com excelentes técnicos, que nos acolheram muito bem. E nós temos o espetáculo já na mão. Apresentamos, ensaiamos... Cada dia é diferente, né? Todo dia tem sua energia própria. E a gente vai fazer um grande espetáculo, pra um grande público, com uma energia muito positiva, com alegria, com romantismo. Com letras que o Rosemberg preparou, líricas. Com o nosso maestro Renato Brito, a quem eu agradeço profundamente. Estaremos todos ligados ao maestro. Vai dar tudo certo. Vamos fazer um lindo espetáculo!".
E assim foi, no palco do Cineteatro, quando, após saudação inicial por Eliane Brasileiro em figurino característico, os coralistas foram os primeiros a chegar, sendo sucedidos pelo Sexteto de Cordas, pelos instrumentistas convidados e pelos primeiros intérpretes do espetáculo, Pingo de Fortaleza e Milla Sampaio, começando a contar e cantar o Caldeirão, o drama e as belezas desse histórico episódio do povo organizado e resistente, refletir sobre seus significados no Brasil de 2024, em que, como ressaltou João do Crato, responsável por conduzir o espetáculo com as falas antes de cada movimento da suite, hoje se faz presente no MST, nos movimentos sociais, na força do povo que luta por uma vida digna e por menos injustiça e exclusão.
Pingo e a jovem Milla Sampaio brilharam novamente na música inicial, "Peregrino da verdade", com o coral já emocionando e apontando como seria a noite, com a força do "Chão sagrado Cariri". A melodia típica da tradição popular dá a sequência com Pingo e Junú em "As lições da natureza", ajudando o público do Cineteatro São Luiz a se integrar também ritmicamente ao espetáculo.
A violenta repressão ao Caldeirão é contada no sexto movimento, "Tudo em pó se transformou", que muda de compasso constantemente, intensificando toda a tensão da destruição da comunidade. Não só era preciso, para os coronéis, governantes, latifundiários, poderosos, encerrar aquela experiência de um outro modo de produção e de dignidade ao povo, mas também marcar um exemplo, deixar uma "amarga lição" de que quem quer que tentasse viver de forma diferente da exploração seria brutalmente reprimido, para que ninguém mais viesse a se aventurar, se rebelar, contestar. Luiz Carlos Salatiel e Luciano Brayner encaram o desafio de uma das interpretações mais difíceis, tanto pela letra, quanto pela música, pelo ritmo, pelo conteúdo e pela alma deste momento.
Passada a tristeza, é preciso celebrar. A continuidade da vida, da luta, das lições do Caldeirão. E assim o público chega mais perto no contraste entre a tensão do movimento anterior e a alegria da peça final da suite, "Flor da aurora", um xote puxado por Fábio Carneirinho, contando ao final com o reforço do retorno de todos os intérpretes ao palco. "Olha essa flor, morena / Bonita, dou pra ti / Cheira essa flor, morena, que eu sou teu colibri... A alegria da turnê completada, das três apresentações realizadas, das belezas oferecidas ao público e por ele reconhecidas na forma de aplausos, emoção, lágrimas e muitos, muitos elogios a este encontro de força, lirismo, história e sentimento. Que venham muitos mais!
Foto: Dada Petrole Kariri |
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