"O tradicional Festival de Camocim contará com a apresentação de 19 canções inéditas. Seriam 20, mas um dos compositores - Valdo Aderaldo - declarou que não viajaria a Camocim com uma ajuda de custo "que não dá pra passar nem a dindim".
O trecho consta do arquivo de edições de um jornal cearense e foi publico no final da década de 80, registrando, já então, uma das características deste que é um dos maiores compositores do Ceará para o Brasil: uma saudável criticidade, um bom-humor mesmo ao dar recados indigestos, uma leitura precisa da realidade e uma sorridente coragem ao nela intervir com boa dose de ironia, uma "pimentinha", quando necessário.
Como na ocasião em que, tendo sido chamado pela Secretaria de Cultura de Fortaleza, nos anos Luizianne Lins, para fazer, no Anfiteatro da Volta da Jurema, o show de retomada do inesquecível projeto "Retrato do Vento", de shows de músicos cearenses naquele belíssimo espaço, agradeceu ao público e aos contratantes, perto de encerrar o show. "Parabéns à Prefeitura pela retomada do projeto! Obrigado ao convite da Secultfor! Muito obrigado a todos e todas por terem me chamado, mas digo como eu ouvia da minha mãe ao mostrar o boletim: 'Não fez mais que a obrigação'".
No começo da noite desta quinta-feira, no Simpatizo Amor de Bar, as mesas foram sendo preenchidas aos poucos. Em sua maioria, por gente mais diretamente atuante no campo da cultura em Fortaleza, pessoas que acompanham há muito a trajetória de Valdo Aderaldo. Audiovisual, música, gestão de museu, gestão cultural... Todos se achegaram para escutar o violão e a voz de Valdo, a guitarra e a flauta de Moacir Bedê, a percussão certeira de Thais Costa. "Toda Flor é um Trio" é o nome do grupo. "Penhoras e penhores, muito boa noite!", cumprimentou, de cartola, usada sempre que tocava uma de suas próprias composições, em um show com arranjos minimalistas mas sempre temperados de pequenas ousadias, mudanças, novas abordagens para as canções mais conhecidas. Tempero do jeito Valdo Aderaldo de ser - e de estar no palco.
O sorriso de Bedê e o abraço apertado da Vaninha foram os anfitriões, e Valdo brindou o público com muitos de seus grandes clássicos. "O suor dos peixes" ganhou a flauta de Bedê como riff, e colocou muitos pra cantarem a linda letra de uma das mais belas composições de Valdo, registrada no disco "Com a Boca no Mundo" por Humberto Pinho, o Humbertinho, que levou falta nesta quinta-feira em que o trânsito pesado da cidade, mesmo à noite, com direito a caminhões e tudo mais, cuidou de não atrapalhar o momento de concentração e foco no show, daqueles raros de se ver e ouvir na maioria dos bares. Nesta noite cada um, cada uma estava ali em conversas cuidadosas, pela música, pelos músicos.
Kátia Freitas, entre cuidados com os pais, também não pôde comparecer para ouvir - e quem sabe participar de - "Coca-colas e iguarias", com espaço generoso para a guitarra de Bedê e com a casa cantando junto. "Saint-Denis-Ceará", gravada também por Mona Gadelha, além de Valdo e Paula Tesser no simples e excelente disco ao vivo registrado no saudoso Café Pagliuca e lançado no 2004 de outra Fortaleza, álbum recheado de clássicos, também foi recebida com carinho e com um coro generoso.
Assim como "Aquela flor", parceria de Valdo e Bedê, que registrou: "Essa música tem um dos versos mais bonitos da música brasileira". "O que faz uma canção dar tantas voltas na razão? Deve ser porque o motor da vida é a dor de quem cantou". E o que dizer do refrão? "Faça um jardim, pra que eu seja aquela for enfim. Solta no ar. Terei o céu pra navegar".
E assim, entre composições próprias cheias de memórias, saberes, sabores e, com Valdo tirando a cartola para buscar na manga arranjos-grandes-sacadas para músicas como a preciosa "Cor de sonho", de Mona Gadelha, do blues à balada, e a "Modinha" de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim e Marcus Vinicius de Melo Moraes, apresentados assim como no RG, a noite passou bonita, embora sentindo falta de tantas canções que ficaram de fora do repertório. "Tipo" "Cantar sozinho", "A cigana", parcerias com Cristiano Pinho, e todas do disco ao vivo que desta feita não conseguiram pegar o trem, aquele velho trem contramão.
Ainda teve quem levantasse e fosse até o palco só pra pedir "Canção de amor banal", a música cantada há seis anos, no mesmo Café Pagliuca, quando do show "Por onde andará Valdo Aderaldo?". Não rolou. Bedê e Thais já estavam era abraçando o povo, Vaninha já desligando a mesa. Luciano Almeida Filho já se preparava pra caminhada até em casa. No palco ladeado por cartazes "Valorizem os artistas", o show já terminara, deixando de imediato a pergunta sobre o próximo. Afinal, precisamos de mais, muitas apresentações mais, desse incauto, inquieto, incontido cantautor. Sem Valdo Aderaldo, por onde andaremos nós?
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