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Em oficinas no 1o dia do festival Choro Jazz, Tiago Costa e Chico Pinheiro debateram o ofício do arranjador e compartilharam conhecimentos e experiências. Confira!

 



Em oficinas nesta terça-feira, 2/12, primeiro dia do festival Choro Jazz, em Jericoacoara, Tiago Costa e Chico Pinheiro, dois dos mais consagrados músicos brasileiros, debateram o ofício do arranjador e compartilharam conhecimentos e experiências. Pianista, compositor e arranjador, Tiago Costa é um dos principais maestros do país e colega de geração de Chico Pinheiro, guitarrista, violonista, compositor, arranjador radicado há muitos anos em Nova York, depois de lançar, no Brasil, discos que atraíram entusiasmados elogios da crítica e contaram com convidados como Gilson Peranzzetta nos arranjos, Chico César, Lenine, Maria Rita, Luciana Alves, João Bosco, Diane Reeves, Ivan Lins nas vozes, entre vários outros. 

No Polo Comunitário de Jericoacoara, na tarde desta terça-feira, dia de estreia da última etapa do festival neste ano, Tiago Costa e Chico Pinheiro, que inúmeras vezes subiram ao palco em São Paulo e em incontáveis cidades, se reencontraram para conversar com jovens músicos, nas oficinas de guitarra e de arranjo. A seguir você confere um pouco de como foi esse papo, mais do que inspirador, sobre o a arte de "vestir a música com roupa de domingo".  

Tiago Costa: 

É importante cuidar da sua harmonia e do seu contracanto. Escrever na tessitura de cada instrumento. O "Bolero de Ravel", por exemplo, é um estudo de orquestração. Quem lembra qual é o primeiro instrumento do "Bolero de Ravel"? É a caixa, tudo bem. Mas o primeiro instrumento melódico é a flauta na primeira oitava. Cordas e pizzicato acompanham. Ele está escrevendo fora da tessitura da flauta, mas sabe o que está fazendo.

Chico Pinheiro:

Ou o fagote na "Sagração da Primavera", do Stravinski.

Tiago Costa: 

Isso. Com um dó acima do dó central. O cara se ferrou na estreia. Quase matou ele. Mas Stravinski ficou famoso, e todo mundo quis aprender. Levou os fagotes a tocarem um pouco mais agudo. Mas é uma exceção da regra.

Chico Pinheiro:

Às vezes o pessoal quer levar isso como argumento para justificar explorar outras regiões. Mas calma! Fazer o feijão com arroz.

Também o "Pássaro de Fogo", do Stravinski. O pessoal do Schonberg, é a mesma coisa. O pessoal pega aquela fase dele mais atonal, mas antes ele escreveu coisas super tonais.

Tiago Costa:

Pra quebrar as regras do jogo, primeiro você tem que saber quais são as regras. (Escrever arranjos)  necessita tempo e dedicação. É como estudar um instrumento. A gente vai ter que estudar pra vida toda, e é uma delícia. Eu adoro fazer isso.

E lembrar que pessoas vão estar tocando, não máquinas. Não o Sibelius, programa de partitura. Ou o Finale, ou o MuseScore, que nós vamos falar depois. E o Dorico. Os percussionistas odeiam a parte de caixa do "Bolero de Ravel". 15 minutos de 9 por 8! Eles têm vertigem! A gente tem que tentar criar algum tipo de interesse para o músico, quando ele está tocando. Lembrar que é um ser humano tocando ali. Esse é o desafio: fazer uma coisa simples e interessante. Tocável e que engaje.

Grades. Música erudita. Tem tudo. Pode nem ser o estilo que eu vou usar, mas tem uma escola de orquestração fantástica. Desde o classicismo até o século XX. Conhecer isso é muito bacana.

No jazz é um pouco mais difícil conseguir as grades de big band. Mas é onde a tradição e a escrita estão juntas.

Desenvolver percepção harmônica. Estudar harmonia é um paralelo que tem que estar junto. Pra ser maestro também. Uma das coisas que me levou a ser maestro é que eu escrevia arranjo e conseguia identificar uma voz errada. Tem muita gente que não sabe fazer isso. A percepção harmônica é muito importante.

Erros são muito importantes pro aprendizado. Grave e escute.

A partitura bem escrita também resolve muita coisa. O pessoal entende e a coisa funciona.

Chico Pinheiro:

Às vezes é uma coisa simples: densidade da música. Muito compasso por linha ou pouco compasso por linha — fica difícil de ler.

Tiago Costa:

Um dos erros mais comuns... Um compasso com sustenidos e bemóis misturados fica péssimo pra ler. Eu gostava de escrever sem a armadura de clave. Uma grande escola! Mas, quando você escreve sem armadura, o programa começa a misturar bemol com sustenido. Isso é uma das coisas que já fiz muito.

Outra dica é dividir ritmicamente o compasso no meio. Se é um compasso 4/4, tem que ter uma semínima ali no terceiro tempo. Porque aí a metade do compasso fica visível.

Eu aprendi meio tarde a ler música.

Uma coisa importante é inserir (a leitura de partituras) no dia a dia. Pega uma coisa bem simples e lê.

Põe o metrônomo e tenta ler sem parar. Bem devagar.

Um aluno dá uma dica: o Sight Reading. Site que gera melodias. Você pode escolher as configurações e ele gera uma melodia. Para praticar a leitura.

Chico Pinheiro: 

A gente tem um país extremamente musical. Incrível como é musical. Mas a gente tem um buraco, uma lacuna nessa parte acadêmica, especialmente sobre leitura, metodologia. É muito recente pra gente, especialmente em música popular. Muito recente! Se você é músico profissional e entra num estúdio, em qualquer lugar do mundo, eles esperam que você leia. Sem problemas. Isso te ajuda muito a tocar com os outros. O trabalho dos outros. Se você quer acompanhar os outros ou tocar numa orquestra, é fundamental ter uma boa leitura.

Tiago Costa: 
Pode ser cinco minutos por dia. Impressionante a diferença que faz.

Chico Pinheiro:

Eu tava conversando com o (André) Mehmari, pianista com que eu toco também, no Brasil. A diferença da gente pro músico erudito é que muitas vezes ele lê tudo, mas não sabe conceitualmente por que aquilo tá ali. Isso que o Tiago falou da percepção harmônica ajuda muito na leitura.
Quando tem um acorde em cima, facilita a minha leitura, porque eu sei harmonicamente, em termos de módulo, o que tá funcionando ali.
É quase como se fosse só ritmo e curvatura.
É importante ter percepção harmônica, não só pra improvisar, mas pra ler melhor.
Parece que você soa diferente quando você sabe por que tá tocando aquilo ali, em termos de interpretação.

Tiago Costa:
Hoje em dia são três grandes programas (softwares) de arranjo:

Finale — vai a cada dia ser menos usado. Ele faliu no ano passado.
Sibelius
MuseScore
Dorico

A Avid comprou o Sibelius. A mesma que faz o Pro Tools. E mandou todo mundo embora. O time que fez o Sibelius resolveu então se reunir e fazer o Dorico. É um baita programa!

Eu tentei mexer no Dorico e achei ele um pouco menos intuitivo pra mim, mas parece que ele já resolveu isso.

Porém, o Sibelius é o líder de mercado em arranjos de orquestra, arranjos profissionais. Por exemplo, na Broadway o padrão era Finale. Agora estão mudando pra Dorico.

Em cinema e games, o Sibelius é mais utilizado. Mas, disparado, o que tem mais usuários é o MuseScore, porque é gratuito. Ele não faz as mesmas coisas que os outros dois, mas tá ficando cada vez mais poderoso.

São detalhes que o pessoal que usa diariamente acaba preferindo pagar, pra ter essas funcionalidades mais bem resolvidas. Mas nada que você não consiga resolver.

O Dorico custa 600 dólares. E cobra uns 50 dólares pra cada update.
O Sibelius é assinatura. Eu pago 200 dólares a cada três anos.

Chico Pinheiro:

Muita gente usava o Pro Tools. Em termos de intercâmbio, o Sibelius era melhor por isso?

Tiago Costa: 

Nas orquestras, 90% usa Sibelius, eu diria. Na minha bolha.

Programas de Notação Musical. Investe e mete bronca. Isso vai te poupar tempo. Arranjo já é por si algo demorado de fazer. Eu demoro de 20 a 30 horas por música quando vou fazer arranjo grande, pra orquestra. Mas eu já tenho muita prática. E eu tenho que dominar bem o programa, senão vai demorar muito mais.

Sobre a bibliografia de apoio: 

  • "The Study of Orchestration", do Samuel Adler. Estou traduzindo ele, quase terminando. É o livro mais conhecido. Padrão.

  • "Orchestration". Tem áudios para o leitor escutar os exemplos de orquestração.

  • "The Contemporary Arranger". A Bíblia. Para consultar informação rápida, é muito bacana!

  • E tem o canal "Orchestration Online", no YouTube. Do Thomas Ross. Super recomendado. Muitos exemplos. Analisa grades e coloca trechos comentando. Um banquete pra quem gosta!

Livros de escrita de partitura:

  • "Berklee Contemporary Music Notation". Conceitos básicos, mas que muita gente não faz, e complica as partituras.

  • "Behind Bars".

Chico Pinheiro:

A má escrita vira um empecilho. Tem pessoas que escrevem difícil. Não precisaria.

Um aluno da oficina pergunta: "E o copista? Como fica com a IA?"

Tiago Costa: 

Eu não vi ainda uma IA fazendo partitura bem. Vi catástrofe. Se um dia fizerem bem, ótimo, maravilha. Mas a profissão de copista já tá condenada há muito tempo. Os arranjadores viraram copistas. Com esses programas, né? Antigamente, tinha que fazer partitura por partitura. Agora você pode ouvir e conferir com os programas. 

Chico Pinheiro:

É muito raro ter um trabalho de copista. A não ser que você trabalhe numa editora, que precise ter um padrão perfeito de copista. Ou às vezes tem big band que tem um copista. Gosta que escreva de um determinado jeito. O copista pega, por exemplo, um arranjo que o Tiago manda e escreve do jeito que eles gostam. 

Tiago Costa:

O fato de os copistas terem saído do mercado piorou muito. Tem partituras horrorosas. Se chegar uma IA que faça bem uma partitura sem ter que te perguntar nada, ótimo, maravilha. Dizem que elas vão fazer arranjo também, né? Via áudio, já fazem.

Pode ser que evolua, mas eu tenho a sensação de que tem hype demais em IA. Não é bem assim. É fantástico. Ele se comunica muito bem, é um modelo de linguagem muito legal. Mas na hora de mandar fazer as coisas mesmo, ele dá uma atrapalhada.

Chico Pinheiro:

E se não começar a dar retorno em dinheiro, efetivamente... Porque as empresas investem muito pra desenvolver uma IA. E se investiu 350 bilhões, e só teve retorno de 50 bilhões... Não vai mais investir.

Tiago Costa: 

Nas próximas aulas, podemos tocar um pouco.

Chico Pinheiro: 

Posso falar um pouco do papel da guitarra na música brasileira. Da guitarra e do piano. Dois instrumentos harmônicos. De como juntar as duas coisas. Como se organiza a cozinha brasileira entre piano, guitarra, baixo e bateria.

Tiago Costa:

Uma das coisas que me ajudaram muito é que gasto um tempo escrevendo pra cozinha da orquestra — baixo e bateria. Essa coisa, quando colocada junto, dá uma percepção da música brasileira.

Chico Pinheiro:

Essa percepção facilita muito. O Tiago, o André Mehmari. Eu nunca tive um problema harmônico com eles. Porque existe um entendimento tácito. Eu falo muito pros meus alunos: interpretação de texto. Você pega uma partitura com harmonia e melodia, lead sheet, faz muita diferença quando você sabe pra quem está escrevendo e quem vai interpretar o seu texto. Dó com sétima e 11+. Você escreve o acorde e a pessoa toca — e não dá certo. Quando se tem uma boa interpretação de texto, as coisas sempre se encaixam. E isso faz parte do arranjo. Você muitas vezes não escreve tudo que a pessoa vai tocar. Mas confia na pessoa que vai tocar.

Tiago Costa: 

Saber o quanto você escreve, também. Pra não amarrar a pessoa.

Chico Pinheiro: 

Quando não conheço a pessoa, costumo escrever mais. Quando conheço, escrevo menos. A gente sabe como a pessoa vai tocar.

Tiago Costa: 

A gente pode pegar o arranjo de “A Rã”, do Chico. Falar sobre rearranjo de músicas conhecidas. E se quiserem mostrar coisas de vocês.

O compositor que mais odeio mexer é o Tom Jobim. Você vai mexer, e fica pior.
A forma como ele pensa é como música erudita. 

Chico Pinheiro: 

O Moacir Santos também.

Tiago Costa: 

O Zeca Assumpção falava que o Jobim odiava quando rearmonizavam a música dele.

Chico Pinheiro: O Francis Hime também. Dava bronca no César Mariano. “Atrás da porta”.

Tiago Costa: 

O Edu Lobo também. As músicas dele sempre têm uma introdução que ele faz, não o arranjador. E quando regravam, o arranjador faz uma intro diferente. “Pô, a introdução faz parte da música”.


Mais sobre o Festival Choro Jazz:

O Festival Choro Jazz conta com a idealização e a curadoria de Antônio Ivan Capucho; organização da Iracema Cultural, coordenada por Aline de Moraes e equipe; apoio da Autarquia Jeri, do Conselho Comunitário e da Prefeitura de Jijoca de Jericoacoara; do Governo do Estado do Ceará; da Secretaria da Cultura (Secult Ceará), por meio do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em parceria com o Instituto Dragão do Mar, da Prefeitura de Fortaleza; com apresentação da Petrobras, em uma realização do Ministério da Cultura e do Governo Federal, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

"É um grande encontro da música do Brasil, pra chamar atenção pra diversidade, a beleza, a intensidade dessa música, pra dimensão do nosso país e pra importância de termos ações como esta em outras regiões. É uma honra e uma alegria estarmos mais uma vez em Fortaleza e Jericoacoara com o Festival Choro Jazz", destaca Capucho.

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