Vitória da música autoral! Isaac Cândido emociona o CCBNB lotado, com dezenas de canções inéditas, ao lado dos/as vários/as parceiros/as de criação


"De tudo quanto via / fazia / poesia...". Quase 200 canções compostas durante os tempos difíceis da pandemia, incluindo a perda de amigos, vizinhos, tantos conhecidos, tantas pessoas no país da necropolítica. Os tempos de clausura, para um criador inquieto, se tornaram momento de refúgio no quarto de casa ou no verde da serra. Revisitando canções e poemas antigos, percorrendo letras recentes presenteadas por muitos autores - e autoras, redescobrindo melodias que nunca haviam visto a luz do sol e dando à luz outras criações.


Parte do resultado dessa impressionante residência criativa consigo mesmo - e com os/as outro/as - teve sua estreia no último sábado, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em show com casa cheia e muita sensibilidade, disposição, coração aberto para o novo. Para a música autoral! Uma vitória e tanto, em uma cena que se ressente de mais espaços para essa produção inédita, mais projetos, ações e condições para sua visibilidade, mas, acima de tudo, de uma mudança de mentalidade, de foco, de atenção, para que maiores públicos possam exercer plenamente seus direitos culturais e ter acesso a essa imensa - e extremamente valorosa - produção.


Quem saiu do CCBNB após o show deste sábado certamente foi tocado pela diferença que o autoral faz. E pela verdade de um trabalho artesanal, personalíssimo, de ourivesaria em poemas tornados canções, harmonias dialogando com vídeos igualmente intensos e sensíveis, palavra cantada no parto de cada nova composição. "Dizer que não procura mais o verbo / e que ele vem naturalmente / verbo azul / verbo encarnado / como amar, sofrer, mentir / dizer que não procura mais o verbo / e que ele vem naturalmente". 


Versos de Marcus Dias, parceiro maior de Isaac Cândido, quase 40 anos de música desta dupla que é uma das maiores do País. Emocionado, na primeira fila, Marcão recebeu uma homenagem especial do parceiro Isaac, com direito a vinho para brindar por tantos anos de criação e cumplicidade e por uma obra que já se estende por cinco discos, com muitos, muitos mais por vir. "Eu tenho asas sobre as asas", escreveu Marcus, quando Isaac machucou o braço e achou que não conseguiria tocar violão, até aprender um novo modo de fazer. 


"Sobre as asas", o nome do show, a partir da canção ressignificada após Marcus passar por problemas de saúde. Asas abertas pelos parceiros, para saudar a própria lavra poética, literária, ética, estética, definidora de vida, no início da apresentação, como que a abrir alas para os tantos outros criadores que teriam suas canções apresentadas por Isaac, em voz e violão e belo cenário, a partir dali, sem introduções, intermezzos, solos, repetições, passagem ligeira de cada canção, como se toda a plateia ocupasse a partir dali o quarto do compositor, para partilhar intimamente do sabor da criação.


Canções a muitas mãos


Depois de "Sobre as asas" e da beleza de "Pra visitar aldeias", parcerias com Marcus Dias, a concretista "Maria e o mar", de Isaac e Silvia Varela, avisava do arrebatamento poético e sentimental que seria a apresentação, pedindo de cada espectador/a que estivesse pronto para mergulhar. "Então, sou pássaro no ar", com Chico Araújo, compositor que estreou em festivais vencendo a segunda edição do evento do Cais Bar da Redonda ao lado de Edinho Vilas Boas, e "Benditos", uma das quatro parcerias com Iris Cavalcante mostradas no show, seguiram na mesma direção, de acolher e convidar ao intimismo, à densidade, com coragem para se deixar levar.

"Caçador de grilos", outra com Marcus Dias, chega como homenagem aos filhos, Pedro e Yago, e é daquelas letras desconcertantes de Marcão, pelo inusitado, pela sensibilidade, pela resolução. "Ir", com Ricardo Guilherme, circula entre camadas a partir de um jogo de poucas palavras, explorando as possibilidades do movimento. O mar, um dos temas comuns a muitas canções da noite, retorna com "Silêncio direi", parceria com Henrique Beltrão. O tempo, com "Pétala distraída", de Isaac e Mara Monteiro, no verso do sem tempo.

"Iracema ao chão", com Ricardo Kelmer, ressalta a triste metáfora da cidade que descuida de seus poetas, seus cantores, escultores, artistas, de sua história, suas referências. Taba adormecida. A cidade da "Sabi Água Ba", de Ricardo Guilherme, provincianópole, entre as dunas, antes de uma das mais belas canções da noite, "Virei pedra, virei lua", parceria com Iris Cavalcante, homenagem a Hilda Hilst e uma forma diferente de emocionar a partir de tema tão recorrente. "Veio a lua, virei pedra. Mas queria ser amor". 

E depois de "O beija-flor", parceria com Alberto Perdigão, outro dos grandes destaques do show: "Justo apreço", de Isaac e Aluísio Martins. Um achado! O intimismo e a densidade retornam com "Até nascer", parceria com Davi Duarte e Erika Peron, enquanto "Rimas internas", com Alexandre de Lima Sousa, brinca de inventar novos significados para a expressão. E se Iris Cavalcante já era uma das autoras mais destacadas na apresentação, depois de "No meu xote" e "Como se fosse eu" vieram aplausos ainda mais fortes, ainda mais merecidos. Canções que deram liga e convidam a ouvir de novo e de novo.

Com o show voltado a apresentar as novas canções, Isaac precisou abrir mão dos vários clássicos de seu repertório. Que bom que revisitou "Com nome de amor", dolorida parceria com Simone Guimarães, a desafiar o coração do público, respiração presa, serenidade à prova, sentimentos a milhão, na mais densa e bela e absurda canção da noite. Antes de um respiro com a descontraída "Despacho", parceria com Roberto Flávio e Adriana de Holanda, e da volta ao começo com "Por ser navegante", com Marcus Dias, Rogério Lima e João Mamulengo, descrita por Isaac como "a primeira música, aquela que me fez sentir que a partir dali realmente eu era um compositor".  

Ainda havia outras canções, que, em noite de rodada dupla, com show de Alan Kardec logo depois, ficaram para uma próxima noite. Sem qualquer problema. Isaac já havia tido pleno êxito em seu convite ao público para visitar as muitas aldeias criadas na tessitura de cada parceria, no timbre peculiar do violão com afinação diferente e grave ao qual se afeiçoou nos últimos anos e que é porta de chegada de tantas canções em tom menor e de caminhos desafiadores. Muitos e muitos aplausos e abraços, ao fim de uma das melhores apresentações da extensa trajetória de Isaac. Um marco em sua carreira. Um sinal importante e uma prova a mais do muito que, longe dos holofotes, vem acontecendo na música do Ceará. Vitória da música autoral!

 

  


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