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Fhátima Santos e o maestro Luciano Franco, companheiro de palco nas décadas de 90 e 2000: reencontro de inúmeros colegas músicos/as, abraçando a intérprete em show solidário nesta quarta |
E tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis... Assim canta Emicida, em um canto que descreve a realidade de quem vive com pouco e sobrevive ao País do racismo, do apartheid, da exclusão social, do preconceito contra pobres, pretos, moradores de "periferia" - as aspas se justificam porque só haveria "periferia" se se considerar que haveria um pretenso "centro". Mais uma demonstração de poder do capital do que uma realidade de pretensas convenções geográficas.
Na noite desta quarta-feira, no Alpendre bar e restaurante, na Aldeota (dito "bairro nobre" por alguns, em contraposição à "periferia" de Fortaleza), o "Tudo que nóis tem é nóis" foi lembrado - e conjugado - de forma diversa. E, ao mesmo tempo, semelhante. "Quem tem um amigo tem tudo", canta também Emicida. Pois uma das maiores vozes da cena musical cearense em todos os tempos - por muitos anos, apontada como a maior cantora de Fortaleza - recebeu nesta quarta um abraço solidário de inúmeros amigos, na forma um show coletivo beneficente. Um apoio, um alento, um humilde presente, em dias mais que difíceis. Desafiadores ao extremo!
Há menos de duas semanas Fhátima Santos, a cantora que antigamente deslumbrou plateias em palcos como o do Teatro Sesc Emiliano Queiroz, entre inúmeros espaços da noite da capital cearense, enviou a colegas como Ciribáh Soares e Daniel Domingues um aflito, urgente, comovente pedido de socorro. Há anos sofrendo de depressão severa, sem poder trabalhar, ela, que por tantos anos foi arrimo de família, se revelava em um áudio de whatsapp, em toda a sua fragilidade. Sem temer nem se envergonhar. Pediu ajuda. E recebeu. Ajuda material, mas principalmente apoio fraterno, amoroso, humano. Na forma de uma imediata campanha solidária.
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Bárbara Sena, filha de Sardinha, lembrou a convivência entre Fhátima e o saudoso mestre |
Da comoção imediata e das providências urgentíssimas, vieram também dois shows solidários marcados. Um deles aconteceu nesta quarta-feira, no Alpendre, reunindo dezenas de colegas músicos e músicas, em uma noite marcada também pela presença do Sindicato dos Músicos do Ceará, entregando a Samuelle, anfritriã, proprietária da Casa, o selo de Estabelecimento Amigo da Música, campanha que vem sendo realizada pela entidade em reconhecimento às casas que respeitam os artistas, na relação de trabalho, e em defesa da aprovação do Projeto de Lei do Couvert Artístico/Valorização do Música. A deputada estadual Larissa Gaspar, que subscreveu o projeto originalmente apresentado pelo deputado estadual Renato Roseno, esteve presente no Alpendre, homenageou Fhátima e se comprometeu a colocar a assessoria jurídica do Mandato para apoiar a cantora em ingresso de ação judicial requerendo o BPC ou a aposentadoria via INSS.
Um grande abraço musical!
Destoando da situação desafiadora - ou quem sabe exatamente por se entender que é o caso de guardar o pessimismo ou a tristeza para dias melhores -, foi uma noite de muita emoção, muitos sorrisos, abraços, fotos, recordações, lembranças, "causos". Na ausência de qualquer representante de Secult Ceará ou Secultfor (enquanto alguns integrantes das equipes que decidem a política cultural no Estado se fazem presentes, corretamente, na França, para acompanhar colegas do audiovisual, há uma lamentável e impressionante dificuldade do poder público em ter sensibilidade, empatia e avaliação do peso simbólico de uma ocasião como um show solidário a uma intérprete há tantos anos distante dos palcos), Fhátima recebeu um grande abraço de protagonistas da música de Fortaleza. "Tudo que nóis tem é nois...". E os colegas de sonho e de som estavam lá.
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Fhátima Santos e a jovem cantora Raara Rodrigues |
Emocionada e agradecendo sem parar a todos/as e a cada um/a, Fhátima deu ao público o maior presente da noite. Interpretou três músicas, redescobrindo o prazer de cantar ao microfone depois de 13 anos, contou. Pediu à colega Gorete para cantar "Só danço samba", ao lado de mestres como Luciano Franco, com quem Fhátima marcou época na Choperia Estudantina, perto do Centro de Humanidades da Uece, e em tantos outros palcos. Cantou com Robson Gomes, Daniel Domingues, Lu D´Sosa, Filipe Mota, Faísca, entre outros instrumentistas. E emocionou ao interpretar "Quando o amor acontece", de João Bosco e Abel Silva, relembrando tantos boleros que ela cantou na noite de Fortaleza, nos anos 90 e 2000, como ninguém.
"O amor quando acontece a gente esquece logo que sofreu um dia". O verso ganhou outro significado, nesta noite em que no Alpendre Fhátima foi abraças por colegas como Marina Cavalcante (destacando a honra de cantar para sua grande referência), Ingrid Sales (que também emocionou a plateia ao falar sobre e para Fhátima), Bárbara Sena (que relembrou a convivência com Fhátima, amiga do saudoso mestre Tarcísio Sardinha, desde o colégio), Gorete, Carla, Ciribáh Soares, entre vários e vários outros e outras.
E o que dizer de Fhátima revisitando todo o suingue, a divisão, a malemolência de "A banca do distinto", com direito ao "na chon" que ela mandava no verso "Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão". "Na chon". Como no final dos anos 90. Como nas matérias de capa nos cadernos de cultura. Como nos shows que ela produzia, divulgava, montava, dirigia, chegando exausta ao momento de cantar. Como se pegasse o mototáxi, décadas antes de Uber, para mais uma vez correr de um show em barraca da Praia do Futuro para um bar na Aldeota. Como se estivesse no palco do espaço cultural de um grupo de comunicação da cidade, em um de seus últimos shows, antes do longo intervalo imposto pela depressão e pelo recolhimento. Como se estivesse de novo na TV Diário gravando um especial com Fernanda Quinderé e Zé Luiz Mazziotti, amigo-irmão e colega que sabe, como poucos, das dores e questões de Fhátima. Como se tudo isso, tudo, tudo tudo e tanto mais, fosse hoje. Agora e já!
Fhátima recebeu o abraço solidário e saiu muito mais cheia de vida, de sonho e de esperança, sem temer compartilhar com a plateia necessidades práticas da vida e a urgência em receber cuidados médicos, incluindo o acesso a medicamentos. Gente para ajudar não vai faltar, na noite que teve, entre inúmeros colegas, Edinho Vilas Boas, Edmar Gonçalves, Arísio Macena, Heriberto Porto, Marcelo Brambiller, Raara Rodrigues, além de Samuelle de de toda a equipe do Alpendre, bem como os frequentadores assíduos, cadeiras cativas da casa.
No dia 14 de junho tem um segundo show beneficente, no Cantinho do Frango, coordenado pelo compositor e cantor Pingo de Fortaleza. Ao longo da noite, surgiram ideias para outras apresentações, em espaços públicos. A grande notícia é o desejo de Fhátima de estar uma vez mais perto do palco, do microfone, do som, da plateia. "Eu só fazia cantar, cantar e cantar. E cantando, estando no palco, me esquecia de tudo o mais. Até da vida", compartilhou. Fhátima, Fortaleza nunca se esqueceu de você. Treze anos depois, seu retorno ao microfone veio em uma noite de simplicidade, amizade, beleza. Um momento histórico para a música do Ceará, inclusive pelas reflexões e ações que precisa ensejar, para uma mudança de realidade.
O fato é que nesta quarta a cidade for dormir menos aflita, para acordar mais feliz. Sua filha Fhátima voltou ao palco. Sua voz voltou aos corações. Seu ritmo, sua irreverência, seu suingue, sua divisão, sua mania de fazer diferente, sua habilidade intuitiva para improvisar e procurar novos caminhos ganharam mais uma vez merecidos aplausos. O amor quando acontece... Nesta noite, Fhátima foi cercada de palmas e de muito, muito amor.
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