Nonato Lima, convidado por Yamandu no "bis" do show deste domingo, 15/10, no Cineteatro São Luiz (Foto: Cineteatro São Luiz/Guilherme Silva) |
"Minha avó disse: 'Que disco esquisito, guri! Disco estranho. Tu fez um disco todo de introdução!?". A anedota é contada sempre pelo violonista gaúcho Yamandu Costa em seus shows, de modo que na noite deste domingo, 15/10, no Cineteatro São Luiz com piso inferior lotado e ótimo público também na plateia superior, muitos já conheciam a história e riram por antecipação. "E tu vive disso? As pessoas vão te ver?", perguntou, preocupada, a avó do instrumentista, compositor, arranjador aclamado internacionalmente.
O "causo", contado em sua simplicidade com bom-humor por um Yamandu que compartilhou com o público a maratona de shows no Nordeste nos últimos dias, tomando chimarrão e curvando o corpo como que a destacar o cansaço de quem chegou a Fortaleza pouco antes de subir ao palco, ilustra de forma leve - mas verdadeira - a antiga questão da busca por ampliação de público para a música instrumental.
"Vocês gostam mesmo de introdução!", tornou a brincar o violonista de Passo Fundo, ao retornar para o bis, sob muitos aplausos. Atualmente morando em Portugal, como compartilhou com o público no Cineteatro São Luiz, Yamandu dedicou o show ao saudoso colega cearense mestre Tarcísio Sardinha. E brindou o público com sua impressionante performance ao violão sete cordas, indiferente a qualquer viagem ou cansaço, com direito a muitos novos temas, compostos durante a pandemia, no espetáculo "Esperançar".
“Quando fiquei em casa, durante essa temporada, em que todos os concertos começaram a ser cancelados, entrei numa imersão de composição que foi de alguma maneira algo muito salvador. Do ponto de vista psicológico, consegui colocar metas para atingir e consegui fazer com que o tempo tivesse mais interesse. 'Esperançar' retrata exatamente isso: são músicas que eu vou explicando no decorrer do concerto, do por quê foram feitas, de que forma foram feitas, e pra que foram feitas", conta Yamandu, no material de divulgação do espetáculo.
"Tem músicas que foram feitas em homenagem a lugares que eu não consegui ir, em homenagem a situações que eu vivi dentro da minha casa no confinamento. É muito bom poder estar levando esse concerto ao Brasil mostrando pras pessoas um pouco dessas experiências de uma forma positiva”, comenta o artista sobre a concepção do show", acrescenta.
Vale ainda destacar, do texto de apresentação do artista: "Yamandu toca de choro a música clássica brasileira, mas também é um gaúcho cheio de milongas, tangos, zambas e chamamés. Um violonista e compositor que não se enquadra em nenhuma corrente musical ele é uma mistura de todos os
estilos e cria interpretações de rara personalidade no seu violão de 7 cordas. Yamandu faz jus ao significado de seu belo nome 'o precursor das águas'".
De "Herança russa" a "La graciosa"
Assim Yamandu foi apresentando ao público temas de um "repertório renovado" após a pandemia. Como "La graciosa", composta na casa de seu produtor na Espanha, em uma ilha, após muito cansaço que se sucedeu ao último show de uma turnê. A melodia veio durante o sono, no merecido descanso, e a composição foi batizada com o nome da ilha. Já "Herança russa" foi apresentada como uma homenagem ao violão de sete cordas. "Que nome ruim, né? Mas agora já registrei essa p...", brincou.
Para um bis diferente, após muitos e muitos aplausos, Yamandu convidou para tocar "três teminhas" com ele o acordeonista cearense Nonato Lima. Momento maravilhoso, com violão e sanfona em clássicos como "João e Maria" e "Feira de mangaio". O jovem e já experiente Nonato, que recebeu uma saudação especialíssima de Yamandu sendo apontado como promissor e capaz de aprofundar e renovar a linguagem do acordeom, é um de nossos artistas que mais têm percorrido outros países, em turnês por conta própria. Porque ainda não temos, embora muito lutemos por isso, programas permanentes de circulação nem pelo Interior do Ceará, nem por outros estados, muito menos por outros países.
Exceção à regra, o acordeonista acaba de retornar de Angola, onde foi participar de um festival de jazz, a convite do poder público municipal. Oportunidade que, claro, precisa ser destacada, mas que não pode acontecer de forma isolada. Precisamos que Estado e Município, assim como a União, lancem editais permanentes, programas continuados de circulação, para amenizar a frase, também antiga, que diz que "o Brasil/o Brazil não conhece o Brasil". E isso inclui, claro, a música instrumental também.
Ações de circulação permanente
Maravilha que artistas de há muito consagrados nacionalmente, como Yamandu, possam hoje em dia circular um pouco mais, após décadas de carreira (começou a tocar aos sete anos de idade sob a influência dos países da fronteira, mergulhou na música brasileira a partir dos 15, estreou em centro cultural aos 17, ganhou o prestigioso Prêmio Visa Instrumental aos 21...). Uma história de muita, mas muita dedicação e luta! Mesmo assim, não é nada fácil!
É preciso construir muito mais oportunidades, o que passa por uma mudança de mentalidade, como passo inicial de mudanças de realidade, para maior presença da música instrumental no dia a dia das pessoas, nas escolas (em nosso eterno descumprir, como País, da lei sobre o acesso à música na formação educacional geral), pela necessidade de mais produtores, mais espaços, mais oportunidades da iniciativa privada mas também pela política cultural, em todas as esferas: município, estados, Governo Federal.
Longe de ser exclusividade da música instrumental, inúmeros artistas, de vários e vários segmentos, ou gêneros, ou expressões necessitam de mais espaços, visibilidade, oportunidades de circulação, caminhos para chegar ao público. No caso da música instrumental, em geral, tanto há uma necessidade de afirmação e de cuidado em semear essa seara como uma política pública que o famoso artigo 18, da muito falada e ainda incompreendida Lei Roaunet, legislação federal de fomento a projetos culturais mediante renúncia fiscal, prevê que eventos e outras ações de expressões como a música instrumental possam ter 100% de seu valor custeado pela União, deduzidos do imposto que seria pago por determinada empresa.
Para modificar de fato essa realidade, além das mudanças já citadas, são necessários mais espaços tanto em espaços da iniciativa privada, como bares, restaurantes, casas de show, teatro, quanto em equipamentos públicos de cultura, tornando a música instrumental uma presença constante - o que é plenamente possível e coerente, dada também a sua enorme variedade de formações, linguagens, possibilidades. Desde os instrumentistas que podem circular como solistas - a respeito de Yamandu -, quanto duetos, trios, quartetos, quintetos, até grandes orquestras. Desde músicos de choro a artistas de rock instrumental. De grupos menores decorrentes de orquestras, como quartetos de cordas ou de sopros, até grandes formações orquestrais, com dezenas de figuras, desafio enorme ainda no nosso País, de muito poucas orquestras, para suas dimensões continentais.
Grandes plateias no São Luiz
Em um contexto de tantos desafios, é muito promissor constatar que um espaço como o Cineteatro São Luiz vem conseguindo arregimentar grandes plateias para a música instrumental, com um trabalho constante, com artistas dessa cena presentes com frequência. Foi assim com Yamandu na noite deste domingo, com o público ocupando a quase totalidade dos 1.050 lugares e sendo presenteado com uma apresentação intensa. Foi assim há alguns meses, com Hamilton de Holanda e Mestrinho. Foi assim há duas semanas, com o violonista cearense Nonato Luiz, que lotou a plateia inferior do cineteatro, em um show aplaudidíssimo, tendo como convidados os integrantes do Quarteto Iguaçu, do Paraná.
Esses eventos, e tantos outros, como as apresentações lotadas da Orquestra Sinfônica da Uece e da Orquestra Contemporânea Brasileira, demonstram que havendo divulgação, mobilização, acesso, construção de percepção de relevância, é possível manter um calendário frequentes de apresentações de música instrumental, e com excelentes públicos.
Precisamos dessa programação e desse trabalho de difusão ao longo de todo o ano, e com músicos cearenses também chamados a ocupar com mais frequência este e outros espaços, alternando-se em datas com os/as convidados/as de outros estados ou compartilhando espetáculos com eles e elas.
Temos mestres da música instrumental, de várias gerações, estilos, ênfases, prontos para reforçar cada vez mais essa cena e arregimentar plateias cada vez maiores, até que isso possa passar a ser visto como algo habitual, consolidando uma vitória na luta por mudanças de mentalidade - e de realidade - de que falamos no começo. Vamos lá! Muito a ser feito, mas com certeza é possível, e nossa gente, nosso público tem muito a ganhar.
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