"Now and then": emoção e reflexões ao ouvir os quatro ex-beatles em uma mesma canção






Antes de mais nada, é preciso reforçar a correção ao erro que dominou manchetes mundo afora: não, a voz de John Lennon não foi "recriada por Inteligência Artificial" para o novo lançamento dos Beatles. Isso mesmo, novo lançamento dos Beatles. Mas ao contrário do que muitos se apressaram a publicar, a IA, tão em voga neste momento, foi apenas utilizada para separar a voz e o piano que Lennon tocou ao produzir em fita cassete, em sua casa, o Edifício Dakota, em Nova York, no final dos anos 70, uma demo de sua nova composição "Now and then".

Assim, nada de "Imagine there´s no singers...", como um jornal chegou a manchetar. Não se trata da IA emulando o timbre de Lennon e cantando algo que ele nunca gravou, e sim da própria voz do guitarrista, compositor e líder-fundador dos Beatles, tal qual registrada na singela fita. Suporte valorizado agora na campanha de divulgação da música "Now and then", com uma K-7 usada como arte nos clipes, anúncios, materiais diversos. 

Uma referência às músicas entregues em fitas cassete por Yoko Ono aos ex-beatles, já nos anos 90, e que originariam os singles do mega-projeto multimídia Anthology, lançado em 1995 e responsável por formar novas gerações de beatlemaníacos ao redor do globo, contando a história da banda como nunca se havia feito, em um impressionante especial audiovisual (no Brasil, transmitido em péssimo horário na madrugada pela Globo), mais tarde lançado em caixa de DVDs. 

Em tempos em que o mercado da música dependia em grande parte da venda de suportes físicos, o projeto Anthology também se destacou pelo lançamento de três primorosos CDs duplos, com "outtakes" (sobras de estúdio, takes anteriores aos definitivos de cada música, mostrando o processo de evolução de cada canção em estúdio, em que os Beatles e seu produtor George Martins se dedicavam com maestria, apesar do curto tempo, na primeira fase do grupo, dividida com as turnês e os inúmeros compromissos). Também com músicas nunca lançadas oficialmente pela banda, takes ao vivo, entre outras curiosidades e atrações.

"Free as a bird"

O primeiro CD duplo foi lançado compreendendo desde a pré-história da banda, com os Quarrymen, até o sucesso internacional com o disco e o filme "A Hard Day´s Night", tendo como single "Free as a bird". A música causou arrepios em locutores de rádio no mundo todo. "Nunca pensei que iria poder dizer isso ao vivo, no ar, mas vamos agora ouvir a nova música dos Beatles" se tornou uma frase repetida em muitas emissoras. 

"Free as a bird" era uma das demos de John entregues por Yoko aos ex-companheiros de banda. Música intimista, cadenciada e ao mesmo tempo arrebatadora, recebeu o melhor tratamento possível em estúdio, com Paul, George, Ringo e o produtor escalado para contribuir com as sessões, Jeff Lynne, do grupo Elo, grande amigo de Harrison, colega nos Traveling Wilburys e pessoa com a sensibilidade necessária e autoridade/intimidade com todos para contribuir para que as sessões de gravação fluíssem bem, minimizando possíveis divergências e oferecendo uma bem-vinda mediação, na primeira vez em que os três ex-beatles entraram em estúdio juntos, tantos e tantos anos depois do auge do sucesso da banda. Embora George tenha contribuído em discos de John e Ringo e Paul em discos de Ringo, durante a carreira solo.  

A emoção do encontro, mesmo se percebendo em certos "takes" do Anthology um George Harrison menos entusiasta e espontâneo do que Paul e Ringo, um pouco mais cuidadoso talvez (como no momento em que Paul sugere tocar "Blue moon of Kentucky" e George pede 'Uma versão mais curta apenas') chamou atenção dos beatlemaníacos e foi decisiva para a divulgação do projeto em todo o planeta. Ali estavam os três ex-beatles, lançando uma música de John resgatada de uma demo em uma fita cassete e finalizada em estúdio pelos ex-companheiros de banda, incluindo versos que faltavam na letra. 

"Fingimos que John tinha apenas saído pra fazer alguma coisa, e assim gravamos e finalizamos a música". O clipe de "Free as a bird" é igualmente primoroso, com um plano-sequência contínuo e centenas de referências a canções e momentos da história dos Beatles. Um prato cheio para os fãs!  

 "Real love"

O segundo CD duplo do projeto Anthology, compreendendo desde o disco "Help!" até o "Magical Mistery Tour", foi puxado pelo single "Real love", com processo bem semelhante ao de "Free as a bird", mas se tratando de uma música conhecida por mais pessoas, também por ter sido inserida, com diferenças, no disco com trilha sonora para o filme "Imagine".

A música, mais para cima e animada, também se beneficiou bastante das contribuições dos três ex-beatles. E surgiu também acompanhada de um belo videoclipe. 

Ficou então a expectativa para que o terceiro CD duplo Anthology viesse também com uma terceira canção de John trabalhada pelos colegas de banda. Mas não havia informação a respeito, e a dúvida persistiu até bem perto do lançamento do disco "Anthology 3". Houve quem cogitasse, na imprensa britânica da época, que teria havido uma recusa dos ex-beatles a gravar um novo single, em protesto ao desempenho dos anteriores nas paradas britânicas e norte-americanas, especialmente em tempos de final de ano, festividades de Natal. 

Mas o que realmente ocorreu é que os três haviam sim trabalhado em mais uma canção, mas, com um veto mais explícito por George Harrison, chegaram à conclusão de que dificuldades técnicas inviabilizariam a finalização da faixa - especialmente o andamento do piano de John e os ruídos presentes à gravação, em tempos em que o piano e a voz não poderiam ser separados.

Agora, puderam. A Inteligência Artificial foi utilizada para separar a voz e o piano. Assim como fora utilizada pelo consagrado cineasta Peter Jackson e por sua equipe para tratar os áudios do espetacular projeto "Get Back", lançado em 2022, com seis horas de filme e todo um novo olhar, revelador para o universo beatle, reescrevendo a história das sessões do projeto "Get back"/"Let it be", realizadas em janeiro de 1969.  

A nova "Now and then"

Também conhecida dos fãs pela demo de John e por vários músicos que espontaneamente fizeram versões elaborando sobre como ficaria a faixa concluía pelos ex-beatles, "Now and then" chega finalmente a um lançamento oficial, e ainda destacada como "a última música dos Beatles", por reunir contribuições de John (composição, concepção do arranjo, voz, concepção do piano), Paul (voz, finalização de alguns trechos da melodia, piano, contrabaixo Hofner, concepção do arranjo de cordas encomendado a Giles Martin, filho do lendário George Martin, e uma belíssima guitarra slide, gravada em homenagem a Harrison), George (violões e partes de guitarra aproveitados das sessões de 1994 realizadas no estúdio de Paul, o mesmo em que agora a música foi finalizada) e Ringo (bateria gravada em seu próprio estúdio, à distância, e algumas vozes). 

Emoções transbordantes nessa faixa, com os quatro se fazendo presentes, do modo possível. Ao mesmo tempo, uma canção e um contexto profundamente melancólicos. É extremamente comovente quando a voz de Paul completa a parte do verso que Lennon deixara. E justamente se referindo ao amor. Uma ponte entre o passado e o presente. Entre o velho amigo e parceiro e o momento atual. 

Impossível não pensar em como ficam a cabeça e o coração de Paul, que insistiu para finalizar a canção, passados quase 20 anos desde o Anthology, mais de 40 anos após a despedida de John e mais de 50 anos depois do fim da banda.. A determinação em terminar e lançar a canção a essa altura do campeonato certamente teve também influência do aniversário de 80 anos de Paul, celebrado no ano passado. A condição humana bate à porta, fazendo lembrar também uma outra canção do próprio Paul, "The end of the end", do disco "Memory Almost Full".

Os violões de aço, característicos das bases de músicas dos Beatles, se fazem sentir desde o começo de "Now and then", assim como a beleza e a consistência da voz de Lennon, limpa, clara, diferente do que se ouvia na demo. E a homenagem de Paul a George, com o slide guitar, é absolutamente carinhosa e ficou linda! Nesse sentido, certamente Paul aproveitou também o recente projeto "Get Back" pra mostrar que existia muita amizade e bem-querer entre eles também, não apenas o clima de desentendimentos, ações e reações às vezes raivosas, retratado no filme "Let it be" original, de 1970. A despeito, claro e inegavelmente, das disparidades entre as oportunidades musicais no grupo e da divisão muito clara nos idos de 68, 69, 70...

O intermezzo com as cordas da orquestra regida por Giles sem que os músicos soubessem se tratar "da última faixa do Beatles", e sim acreditando se tratar de um projeto solo de Paul funcionou. Fez bem à música, que tem na levada fluida de bateria característica de Ringo um contraponto ao tom menor e à melancolia da composição, uma canção de amor em tom de pedido de desculpas, de saudade ("de vez em quando, sinto sua falta"), de tristeza pela distância mas também de esperança de um novo começo ("mesmo se de vez em quando começarmos de novo"). O final, com a opção de usar a metade do número de compassos para cada acorde, para provocar surpresa e conduzir a harmonia para um breve passeio e uma resolução, é outro destaque da música. 

"Now and then" absorve o ouvinte pela melancolia inicial, sendo inevitáveis sentimentos e reflexões sobre todo o contexto.  Muita gente relatou chorar após ouvir a canção no clipe de pouco mais de quatro minutos. Ou ao conferir o mini-doc de cerca de 12 minutos, ambos assinados por Peter Jackson, que, mesmo depois da ampla acolhida faorável às seis horas de "Get Back", se confessou nervoso ao fazer o primeiro videoclipe de sua carreira. E logo para quem? Em pleno 2023, os Beatles seguem repercutindo - e emocionando - com uma "nova" faixa. Surpresas que arrebatam e convidam a um outro estado de espírito: de vez em quando, now and then.

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