O Maranhão no Ceará: emoção e beleza se emaranharam no CCBNB na abertura da Virada Cultural, nesta sexta







 Tão próximos e tão distantes... A velha realidade das dificuldades para a circulação de shows musicais que leva a frase "O Brasil não conhece o Brasil" a seguir infelizmente tão atual faz com que muitas vezes desconheçamos, ou tenhamos pouco acesso, mesmo à música de nossos vizinhos. Premidos pela lógica das plataformas, que reproduzem a exclusão disfarçada de telinhas coloridas e privilegiam artistas de amlo alcance "nacional" e internacional, tal qual faziam as ditas "majors" no tempo das gravadoras", quem em Fortaleza sabe dizer três artistas de destaque na música de Rondônia? Ou do Mato Grosso do Sul? 

Pois na noite desta sexta-feira, 8/12, o público da capital cearense ganhou uma belíssima oportunidade de reconhecer a produção de grandes mestres e de novos nomes da música do Maranhão. Uma cena riquíssima, que precisa e merece e deve ser mais conhecida e frequentada pelo público cearense. 

Um show belíssimo e emocionante, do começo ao fim, marcou a abertura da Virada Cultural promovida pelo Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza, programação de fôlego, que segue até o dia 16/12, com mais de 100 atrações e inúmeras atividades, no próprio CCBNB (onde neste sábado tem Ação Hip-hop, Jazz em Cena com a Marimbanda e muito rock), no Passeio Público (onde a turma do Maranhão se apresenta novamente, agora informalmente, ao meio-dia deste sábado), no Beco do Tambor, no Raimundo dos Queijos, no Palco General Bizerril e, encerrando a programação, em Paracuru, em uma edição ampliada do projeto Praia da Música.  

Tão próximos e tão distantes... Entre os que conjecturam sobre a existência de vida fora da Terra, há quem tenha convicção de que sem dúvida ela existe, dada a multiplicidade de estrelas, planetas, sistemas solares, galáxias, muito além do que nossa mente pode ter a dimensão. Mas... há um problema! A distância entre planetas em que vida inteligente se desenvolveu pode ser tão absurdamente grande que mesmo civilizações de avançadíssima tecnologia jamais a consigam transpor. Cada povo estaria em seu lugar, mas fadado a não conseguir fazer contato com outro, diante da imensa "légua tirana" espacial. Cada um em seu espaço-tempo, sem notícia do outro, universos paralelos dentro da mesma realidade.

A digressão há de merecer o perdão do raro leitor, da rara leitora, mas vem à mente ao percebermos, diante de um show como o desta sexta-feira, o quanto precisamos saber mais, ouvir mais, mergulhar mais na música de nossos vizinhos. E olhe que são muitas - e históricas - as ligações entre a música do Maranhão e a do Ceará, graças a muitos artistas que se dedicam a esse intercâmbio, há décadas, e tentam aproximar essas realidades, qual dobras no espaço, "buracos de minhoca", vértices temporais, portais para outros pontos do universo.

Nesta sexta-feira, no CCBNB, assistindo ao show no palco batizado em homenagem ao saudoso percussionista e compositor maranhense Papete, o cantor e compositor cearense Rogério Franco lembrava os tempos em que em Imperatriz-MA convivera com Wilson Zara, do Maranhão, que subiu ao palco na parte final do show de ontem, com sua voz e seu violão e suas canções de enigmático-psicodélico-realista trovador. Como "Imperador Tocantins" e "Zaratustra", de onde veio seu nome artístico. "Acho que acabou dando certo ficarmos no final", comentou, ilustrando o fato de ele e Zeca Tocantins, que encerrou a noite, se apresentarem sem a presença dos excelentes Isaías Alves (bateria), João Simas (violão) que subiram ao palco com a Caravana do Maranhão, de nada menos que 11 grandes artistas, convocada pelo centro cultural para essa necessária e urgente travessia.

Literalmente dirigindo o grupo, em van desde São Luís até Fortaleza, os artistas maranhenses encantaram quem chegou ao CCBNB, em uma sexta-feira pré-natalina de inevitável concorrências com as tantas "confraternizações" da família, da empresa, do prédio, do grupo de amigos, do futebol, da música...  

Edmar Gonçalves, intérprete e compositor cearense dos mais premiados em festivais, dançou o show todo e compartilhou lembranças da noite ludovicense, enquanto relembrávamos o colega compositor Evaristo Filho, fascinado pela música do Maranhão e que agora está hospitalizado, recebendo nossos desejos de pronta e plena recuperação. Assim como o Ceará vai muito além da canção cearense, do xote e do baião, o Maranhão é muito mais que o reggae e o boi, mas é também esses gêneros/universos musicais, que, sim, se fazem presentes em alto e bom som, e sem nenhuma contraindicação. De forma tão bela quanto espontânea. Verdadeira! 

O suingue dos músicos chama atenção. As canções, duas a cada intérprete convidado/a para o show coletivo desta sexta-feira, vão passando intensas, comunicativas, arrebatadoras, nos ritmos quentes que fazem chão para harmonias simples e letras marcantes, como as de Santacruz, apontado por Dicy, que o antecedeu, como um orixá, uma entidade. O público sentiu e entendeu o porquê, nas canções de letras concisas entoadas pelo veterano cantautor.

Era a continuidade do arrebatamento que tomara a plateia desde "Lera chorou" e "Preta sim", levadas ao palco por Camila Reis na abertura do show, com reverência à ancestralidade e com a afirmação dos que, no Brasil de 2023, lutam contra o racismo, a desigualdade, a morte. Pelo direito de existir. 

Camila, com voz incrível e presença de palco sem igual, e o trio de instrumentistas completado pelo incrível cearense Lucas Arruda no contrabaixo foram acolhidos com muitos e muitos aplausos. Assim como Elizeu Cardoso, brilhando especialmente em "Coureira" e também apresentando "Bela mocidade". O que dizer, então, de Dicy, novamente capturando ouvidos e olhares, sensibilidades e emoções, com "Equinócio" e "Não há nada em seu lugar". Uma intérprete gigante, em um show de intérpretes gigantes como a pequena Regiane Araújo, em frente da qual o público se curvou de vez. Simplesmente ar-re-ba-ta-do-ra com sua voz surpreendente, intensa, ganhando o espaço em "Me levo" e "Tirem as cercas". Muitos, muitos aplausos!

Enquanto a cantora e compositora Lena Garcia também foi muito aplaudida com suas canções personalíssimas, a jovem cantora Klicia pareceu representar um novo momento, ou uma outra faceta, das músicas do Maranhão, sempre no plural, ao dialogar com sonoridades de outras cores e temperos, como o soul e o pop, em canções como "Alarde". E depois de Wilson Zara e Zeca Tocantins se apresentarem, cada um com seu violão, sempre sob a câmera atenta do jornalista e articulador cultural Zema Ribeiro, a caravana inteira retornou ao palco, para mais momentos de música e emoção a uma plateia que já se perguntava como viabilizar um novo show em Fortaleza, como promover um intercâmbio entre esse projeto e iniciativas coletivas como o "Futuro e Memória - Música do Ceará", que reúne representantes de cinco gerações da nossa cena e também enfrenta dificuldades para circular, dado o grande número de músicos, muitos deles mestres acima dos 60, 70 e, em breve, dos 80. 

O Brasil segue precisando conhecer o Brasil. E seguimos tendo o desafio de construir essa nave à velocidade da luz, de dobrar o espaço-tempo, de buscar uma passagem para esses outros universos musicais. Em uma noite de tantos deleites musicais e poéticos, fica a certeza de que podemos e precisamos estar mais próximos. Vamos lá! Mãos à obra! Vamos juntos!   


(Fotos: Zema Ribeiro/artistas do Maranhão)












 

    

 

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