João do Crato: a voz da história na Suíte do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que estreia nesta sexta, 19h, em Juazeiro do Norte

João do Crato e Pingo de Fortaleza, o Coral da UFCA e convidados, em ensaio da Suíte do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Centro Cultural do Cariri, no Crato, em 8/5/24 (foto: Helio Filho/CC Cariri)


Nesta sexta-feira, 10/5, às 19h, a Praça Padre Cícero, no furor do centro comercial de Juazeiro do Norte, se transformará por alguns instantes no chão sagrado do Caldeirão. Será ali a estreia do espetáculo Suíte do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, de Rosemberg Cariry e Pingo de Fortaleza, encenada em praça pública com mais de 50 artistas, com direito ao Coral da Universidade Federal do Cariri, ao Sexteto de Cordas da Vila da Música, no Crato, a instrumentistas convidados, como Jair Dantas, Weber dos Anjos, Igor Ribeiro e Ricardo Pinheiro, e a vozes referenciais do Cariri, como Luiz Fidélis, Abidoral Jamacaru, Pachelly Jamacaru, Luis Carlos Salatiel, Fatinha Gomes, Janinha Brito, Bárbara Gomes, Milla Carvalho, Junú, Fábio Carneirinha, Carlos Rafael e a mestra Marinez. Todos sob a regência do maestro Renato Brito, responsável pelos arranjos e pela direção musical.

A dramaturgia da suíte, dividida em sete movimentos, cada um deles interpretados por dois ou mais desses artistas, inclui, além das letras compostas por Rosemberg e musicadas por Pingo de Fortaleza, no projeto que também conta com um disco que acaba de chegar às plataformas e terá versão em vinil, além de um documentário que estreou nesta quinta-feira no Centro Cultural Banco do Nordeste Cariri, tem um ponto forte nas falas presentes no documentário e no espetáculo, antes de cada música. 

São elas que contextualizam o espectador/ouvinte sobre o que foi o Caldeirão, quem foi o beato José Lourenço, como era o Cariri daqueles tempo, como uma história de uma experiência alternativa de produção, sociedade, vida pôde ganhar o Ceará, o Nordeste, o País e alcançar projeção histórica internacional, pela ousadia de colocar em prática outras verdades: um outro modo de produzir, partilhar, viver, com cada um, cada uma trabalhando e recebendo de acordo com suas necessidades e possibilidades. Uma experiência reprimida por soldados, incêndios, cordas, amarras para corpos e almas, bombardeios de campos de fugitivos, deportação de presos depois de os manterem feito gado, encurralados, reprimidos, humilhados. Porque não bastava destruir o Caldeirão; era preciso fazer com que os pobres e desassistidos aprendessem uma amarga lição, contra o sonho de liberdade, fartura, autonomia, poder de escolha e de decisão.

João do Crato, multiartista, cantor que é acima de tudo intérprete, produtor cultural, diretor artístico, ator, mestre de cerimônias dá a voz aos textos de Rosemberg que promovem um entendimento da história e são apresentados antes de cada um dos sete movimentos da Suíte do Caldeirão do Deserto da Santa Cruz. Possuidor do dom de interpretar como ninguém tanto poemas quanto canções, João do Crato conversou, em um dos intervalos dos ensaios da Suíte, realizados no Centro Cultural do Cariri, no Crato, sobre o espetáculo, seu papel como condutor da história narrada e como anfitrião do público ao universo de cada música.

Na entrevista ele fala também sobre os desafios de fazer arte no Cariri, as dificuldades para se apresentar com seu próprio trabalho e relembra Geraldo Urano, o saudoso compositor de quem se tornou o maior intérprete. Confira a entrevista. Em tempo: a Suíte do Caldeirão do Deserto da Santa Cruz será apresentada nesta sexta, 10/5, na Praça Padre Cícero, em Juazeiro do Norte; neste sábado, Às 19h, no Centro Cultural do Cariri, no Crato, e domingo às 18h no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, sempre com entrada franca. Oportunidade sem igual para mergulhar em muitas belezas nascidas da dor da nossa história. 

Dalwton Moura - Você tem um papel primordial no espetáculo, que é conduzir o espectador por entre os movimentos da suíte do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, com a sua voz, antes de cada movimento da suíte, antes de cada música. Como você refletiu sobre esse papel, chegou ao projeto, pensou no que poderia oferecer de melhor?

João do Crato - A música que eu ia cantar findou que era aquela que era Salatiel e Luciano Brayner estão cantando, que é o sexto movimento da suíte, a música sobre o ataque ao Caldeirão. E aí mudei pra fazer as falas do espetáculo, o que também ficou legal porque não ia ser bom eu estar falando e de repente cantando. Eu acho que só no final que eu vou cantar o textinho da rosa (parte da letra do último movimento), o refrão final da suíte. É muito importante estar contando a história heroica do Cariri, do povo cariri, dos nossos ancestrais, e toda essa questão religiosa que é muito forte, principalmente também dessa chapada, desse povo, dessa floresta, dessa religiosidade latente, dessa coisa aqui que é tão forte, essa mística do povo do Cariri. Eu acho que sempre que você fala do Caldeirão é emocionante, é legal, é heroico e nos alimenta, porque nos dá a certeza de que nós somos remanescentes de uma história gloriosa de luta, de compromisso com a terra, com a coisa igualitária, com o humanismo, com o meio ambiente, e sim, com tudo que é maravilhoso, que é o que nós sonhamos coletivamente. Uma outra forma de vida, né? Uma outra forma de viver.

E como é que os textos do espetáculo chegaram pra você? O que é que transmitiram a você, disseram à sua sensibilidade?

João do Crato - Eu gosto muito do que Rosemberg escreve. Eu já conhecia a obra dele do disco "Guerra e Paz", de Cleivan Paiva, que tem a música do Caldeirão, que a gente inclusive já trabalha. Eu já trabalhei essa música de Rosenberg dentro do acampamento do MST aqui com os jovens. A gente pegou essa música e destrinchou ela numa teatralidade com cânticos, com encenações. Então eu já tenho uma certa unidade com que Rosenberg fala essa coisa, esse desbravar do sertão, né, que ele faz na fala dele, né, nos textos dele. Aí eu gosto e me sinto bem, me sinto bem, porque eu gosto dessa coisa epopeica do nosso semiárido. 

João, você falou que é um tema recorrente, o Caldeirão, que é sempre importante seguir, falando a respeito. Você se recorda de outros espetáculos, outras iniciativas assim, desse porte, com um espetáculo como esse, um musical? E uma gravação, um documentário, um projeto desse tamanho?

João do Crato - A gente já fez "A Terrível Peleja do Zé de Matos contra o Bicho Babau nas ruas do Crato", que é um texto de Zé Flávio, também todo musicado, e que a gente teve um elenco também muito bom de artistas que cantavam e dançavam e interpretavam, uma história muito legal, e que a gente fez algumas apresentações, né? Já fizemos, fizemos aqui pelo Cariri, acho que chegamos a fazer Sobral. Mas era um elenco muito grande e ficou meio que impossibilitado de viajar. Tentou entrar naquele circuito do Sesc e tal, mas sempre alegavam que era um elenco muito grande e era difícil fazer essas... E aí, findou que abortou. É uma pena, porque é um espetáculo lindíssimo e que conta uma saga de um poeta popular que trabalhava nos engenhos de cana aqui pelo Cariri, que peitava toda essa coisa dos coronéis, da petulância dos coronelistas. Ele sempre tinha uma coisa para poder machucar o coronelismo aqui, né? E isso foi muito interessante a gente levar para o palco, né? Porque o lado... Foi bem recente, foi já nessa leva de 2010 a 2020. Não, não, era um elenco, era menor, era um elenco, era um, por exemplo, tinha os atores. A parte musical tinha a Amélia do Zabumbeiros Cariris, tinha Abidoral... É muito bom esse texto dele, é um dos textos que eu acho que poderia até ser mostrado novamente com uma nova roupagem. É claro que porque a gente vive essa época em que agora todo mundo só faz solo em teatro, porque tem vontade de fazer, de mostrar e se tiver muita gente não tem condição de ter circulação... 

Como também acontece na música...

João do Crato - Exato. É como a música também. A gente tem as mesmas dificuldades, né? Desse tamanho aqui, né? A gente tem aqui, eu por exemplo, eu tenho um grupo, tenho shows montados, mas não faço shows, quase, porque são quatro, cinco músicos comigo e mesmo assim tem dificuldade, as pessoas acham que tem uma formação grande, que é despesa, que não sei o quê, aí a gente sempre tem essa dificuldade. E faz até esse show com um cachê como se fosse para duas pessoas. Aí divide com oito, seis ou sete, porque conta também com a compreensão dos músicos que são legais, que gostam de tocar e querem fazer. 


João, e esse encontro aqui no Centro Cultural Cariri, no Crato. Com Salatiel, Pachelly, Abidoral, Fidélis, Breiner... Fatinha, Janinha, Milla, mestre Marinez... Como é que você percebe e sente esse encontro, motivado pelo espetáculo Suíte do Caldeirão e, como você ressaltou agora, tão difícil de acontecer mais frequentemente, pela falta de mais oportunidades com uma produção adequada, uma remuneração adequada?

João do Crato - Esse encontro, essa emoção desse espetáculo, assim, provocar também esse encontro, acho que o Pingo e o Rosemberg tiveram essa sensibilidade de dizer "Olha, apesar dessa dificuldade tão grande de trabalhar com grupos numerosos, vamos promover esse encontro aqui". É uma ideia interessante, né, que o Rosemberg sempre preza por isso, pela coletividade. Eles agora estão batalhando para fazer uma edição extra do Salão de Outubro, que foi um salão que aconteceu com muita força, revelou muitos grandes artistas aqui. As primeiras oportunidades que surgiram das pessoas se apresentarem em cima de um palco, onde tivesse um público específico para ver o Salão de Outubro, teve essa conotação. Uma produção genuinamente saída do meio artístico, que todo mundo batalhou, todo mundo fez produção, todo mundo fez direção, todo mundo fez tudo. E é muito bom, porque juntar essas gerações é legal, porque existe sempre uma troca, sempre tem um respeito mútuo, até porque nós vivemos um tempo contemporaneamente, independente das diferenças etárias, né? A gente vive uma mesma realidade hoje em dia, dentro desse cenário da música, das artes de um modo geral. Um cenário meio caótico, porque a gente perde para todos os produtos nefastos da indústria cultural, não temos oportunidades. Aqui no Crato, por exemplo, somos artistas aqui, mas quem é ali? "Ah, aquele ali é o João do Crato, eu conheço". Mas o que é que ele faz? "Ele é da cultura". Mas aí o que é que ele faz? "Não sei, não sei...". Nunca me viram cantar, a juventude de hoje. Porque a gente não vai nos espaços que poderia ocupar nas escolas públicas, a gente não sabe, a gente teria que ocupar esses espaços? A gente não ocupa, e aí a gente está incorrendo nos mesmos erros, né? De cantar para os guetos, as mesmas pessoas que já veem a gente, sempre são as mesmas. Aí é isso, é conviver com isso e não saber isso, viver até quando a gente pode mudar essa realidade, né? Lutar para mudar, né? 

João, para encerrar, é sempre importante a gente falar do Geraldo Urano, lembrar esse compositor. Você trouxe essa obra dele com tanta força para os palcos! Tem alguma coisa do repertório dele que se identificaria aqui, com a Suíte do Caldeirão, com esse grande encontro de tantos artistas aqui? O que ele acharia desse espetáculo, de estar aqui hoje no meio dessa roda?

João do Crato -  Acho que Geraldo, a história de Geraldo, ele tem essa conotação, né? Ele era muito irreverente, muito louco! E essa questão da religiosidade para ele, ele era mais crítico. Mesmo assim, eu acredito que tem alguma coisa que tenha a ver, se a gente for dar uma uma revisitada na obra dele. Mas ele era mais crítico a esse aspecto da religiosidade. Inclusive, ele fez uma época, uma série de poesias eróticas com Nossa Senhora, com todas as coisas que ele tinha, os traumas, da da questão da sexualidade dele. Aquela coisa que ele foi sempre muito... Porque ele era um filho único numa casa de mulheres e de uma família que morava dentro do oco do tradicionalismo aqui do Crato, que era sempre uma cidade que viveu muito de aparências, a burguesia, nome de família. O seu sobrenome era mais importante do que qualquer outra coisa. O fato de você morar naquele trecho ali do Pimenta, que era onde morava toda a elite do Crato... Então, você tinha que ser... Era muito cobrado, né? E ele foi muito cobrado. Ele sofreu bastante. Então a sexualidade dele era muito louca, ele se apaixonava pelas enfermeiras dos hospitais psiquiátricos, ele se apaixonava pelas freiras do convento. Ele era um homem muito maravilhoso, né? E ele escreveu algumas poesias eróticas em cima dessa história, que ele até me deu, eu acho que eu as tenho guardado. Eu pensei uma época em encená-las com uma amiga que era bailarina mas achei que não seria possível, dentro da realidade que nós temos, né? Mas estão guardados esses textos, quem sabe para alguma publicação futuramente.


Mais sobre João do Crato:

João do Crato, compositor e cantor cearense possui uma carreira de mais de 40 anos abrilhantando os palcos do Cariri, Ceará e Brasil. Performático, multiartista, João do Crato vai das Lapinhas e Dramas Populares ao Rock'n Roll apostando na irreverência e afronte como uma marca em sua carreira. João escolheu viver no Crato por acreditar que o artista tem compromisso com seu povo , sua terra e ancestralidade.

Nascido sob o signo de Áries, num domingo de ramos, João do Crato, orgulha-se de ter tido uma infância rica pelo convívio salutar com a natureza, com a cultura popular e com os princípios do bem viver. Brincante de “Lapinha” e nos “Dramas Populares”, conviveu com a riqueza da Feira do Crato, adjuntos de colheitas de algodão, casas de farinha, engenhos de cana, debulha da safra agrícola.

Na magia das ‘Histórias de Trancoso’, dos “Causos de Assombração” e na mística das Renovações, João do Crato construiu o alicerce da sua tragédia artística. Viveu intensamente na adolescência o movimento de Juventude e ao migrar para Fortaleza estreou profissionalmente nos palcos musicais como vocalista da banda “Chá de Flor”, no ano de 1980, integrando o movimento ROCK’N ROLL em Fortaleza ao lado de Mona Gadelha, Lúcio Ricardo dentre outros nomes que movimentava a cena roqueira do Ceará.

De volta ao Crato, passou a cantar em ‘conjunto de baile’, trio elétrico, barzinhos, festivais, musicais de teatro e etc, voltou temporariamente para Fortaleza onde Integrou o Grupo Cearense de Opera na montagem da Ópera Nordestina “Moacir das Sete Mortes” que conta a historia do Ceará, obra inacabada que tinha como diretor o soprano masculino Paulo Abel do Nascimento (em memória).

Foi em parceria com Manel D’Jardim, arranjador, violonista e baixista, que João do Crato deu seqüência a sua carreira solo, interpretando os grandes compositores caririenses (Abdoral jamacaru, Cleivan Paiva, Pachelly Jamacaru, Geraldo urano, Luiz Carlos Salatiel, Luiz Fidélis e outros), hoje compõe as loas do Maracatu Nação Iracema (Fortaleza) e do Maracatu Uino-erê (Crato).

Educador Popular, militante de causas sociais, ambientais e pela cidadania, João do Crato optou por viver no Cariri, por acreditar que o artista tem compromisso com seu povo, com seu lugar e que as grandes transformações acontecem a partir da convivência cotidiana com o respeito à ancestralidade, às tradições culturais e adaptações à modernidade sem, no entanto, contaminar-se com os vícios da sociedade moderna: o consumismo, o individualismo, a competitividade e as diversas formas de violência.








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