"Vocês não sabem a felicidade, a emoção de estar aqui, apresentando este projeto, depois de mais de um ano de trabalho. É clichê, mas vou dizer. Se as pessoas, os políticos agissem com amor, como existe amor no que está sendo feito aqui agora, o mundo seria diferente". Assim o consagrado pianista Fabio Torres, vencedor de dois Grammy, integrante do Trio Corrente e autor dos discos solo "Pra Esquecer das Coisas Úteis" e "De Cara pro Sol", saudou o público que compareceu em grande número ao bem cuidado Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, para a estreia do espetáculo de Fabio e da Orquestra São Paulo-Havana.
Ao lado dele, uma artista também de grande reconhecimento em Cuba, a maestrina Daiana Garcia, diretora da Orquestra de Câmara do país, formação sediada em Havana, para onde Fábio Torres viajou no começo de 2023, tendo então contato com os grandes músicos da ilha, por intermédio do produtor musical e violonista Swami Jr, presente ao show desta sexta e recebido com um agradecimento especial por ter feito a ponte entre Fabio e Daiana e entre o pianista, compositor e arranjador brasileiro e vários músicos do primeiríssimo time da ilha.
Do lado dos "brasileños", arregimentados pelo contrabaixista Pedro Gadelha, outro que se destaca bastante ao longo do show, um time de craques que inclui integrantes da prestigiosa Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp): Luiz Amato, Amanda Martins, Matthew Torpe e Robinho Carmo (violinos), Gabriel Marin (viola) e Heloisa Meirelles no violoncelo. Também muito aplaudido ao longo da noite, Léo Rodrigues rouba a cena no pandeiro. "A gente tinha que ter um percussionista brasileiro. E que percussionista!", elogiou Fabio, com o público concordando entre muitos aplausos.
Pontes musicais Brasil-Cuba
Contando que sua companheira, Karen, "deu corda" para que fosse a Havana no primeiro semestre do ano passado, Fabio Torres compartilhou com o público o surgimento da ideia do projeto, bem como algumas das dificuldades encontradas para sua concretização, nestas duas noites no Sesc Pinheiros e, melhor ainda, na gravação de um álbum, registro a ser feito ao longo deste final de semana no estúdio de André Mehmari e com lançamento estimado para setembro.
Que bom que as orquestrações esmeradas de Tiago Costa e o encontro desse grupo, que deu liga e emocionou a plateia na estreia nesta sexta, vai virar álbum e poderá ser vivenciado por mais pessoas, além de contribuir para que o projeto se mantenha ativo e ganhe novas apresentações. Mesmo com os desafios práticos de uma formação tão numerosa. Afinal, é justamente nesse encontro de matrizes, heranças e experiências musicais, na bagagem trazida por cada um/a, que está a maior riqueza do projeto, para além da expertise dos músicos, das várias possibilidades da junção entre piano, cordas, pandeiro, também enfatizada por Fabio Torres, e da beleza dos arranjos e das composições.
"Eu fui a Havana em abril do ano passado e levei um susto com o que eu vi lá em uma área de arte, de cultura. Eu imagino que quando um estrangeiro vem ao Brasil também tem essa sensação, né? Que são pilares da música popular no mundo. Cuba, Brasil e Estados Unidos. Eu vi pianistas tocando coisas incríveis. Jovens pianistas, pianistas mais maduros, de todos os estilos. É realmente uma coisa comovente, apaixonante", ressaltou.
"E aí vi que existe um mundo tão parecido entre esses dois países, né? Ontem eu descobri que os povos indígenas de Cuba também foram exterminados. Lá também teve escravidão. Então nós temos tantas tristezas, mas nós temos tantas alegrias também. E a música é muito ostensiva! Impossível não se contagiar com essa alegria. É isso que nós estamos vivendo aqui hoje", apontou. "A ideia desse projeto foi encontrar essas semelhanças. E através das nossas diferenças, a gente também se complementar e criar alguma coisa nova, alguma coisa fresca, né? Um encontro de culturas, um encontro de gerações, de histórias", acrescentou Fabio.
"E a palavra-chave dessa união aqui, falando de música agora, se chama 'síncopa'. É aquilo que tem na música do Brasil e de Cuba que faz a gente querer dançar. Foi isso que eu vi lá, eu vi instrumentistas de cordas tocando a síncopa de maneira perfeita".
"Irmãs gêmeas"
Daiana Garcia, por sua vez, agradeceu a Fabio Torres e destacou as matrizes musicais do Brasil e de Cuba como "irmãs gêmeas". "As raízes são muito fortes, e a diversidade que eu vejo nas ruas e a gentileza e a alegria e sempre esse desejo de viver e viver por mais essa energia é igual ao dos cubanos. Me sinto como em casa e estou gostando e aprendendo muito, muito nesta experiência", testemunhou.
"Estes músicos da Orquestra Sinfônica de São Paulo são verdadeiros maestros, que nos estão ensinando muito, mas têm também uma qualidade humana, como eu disse, que nos faz sentir como em casa, que são realmente família".
Ritmo e delicadeza
Desde o começo, com duas composições de Fabio Torres, a citada "Pra esquecer das coisas úteis" e "Venezuelana No.1", ficou claro que, além da síncopa, o encontro entre brasileiros/as e cubanos/as venceu os riscos citados pelo próprio pianista e fez a música acontecer de forma delicada e bela, nos pizzicatos, fluida e intensa, nos contrapontos, na soma das linhas melódicas, sob a regência de Daiana.
As características dos temas foram enriquecidas pelas cordas, em uma riqueza de arranjos que já justificariam o projeto, mas que acabou levando a novos caminhos. Como em "Lilyá", apresentada com energia, sob o olhar enternecido do compositor, que quando não tocava o piano parecia entregar-se ainda mais ao êxtase de ver sua obra interpretada pelos colegas em um encontro tão raro e especial.
Depois de Daiana contar a história do excelente tema "Pan con timba", composto por seu marido, Aldo López-Gavilan, "Guaguancó", de Guido López-Gavilan, sogro de Daiana, chega como um dos números mais aplaudidos da noite, ao ser apresentado exclusivamente pelas jovens músicas que integram o Quarteto da Orquestra de Câmara de Cuba, com violinos, viola e cello em novo destaque para os pizzicatos e para o apuro rítmico, percussivo.
![]() |
"Essa música se fazia com instrumentos muito rústicos, de ferro, onde não havia acesso a outros. Tem uma influência muito grande da música negra, da música africana, o qual também é outro elemento que nos une com o Brasil. Aqui o samba, os choros, lá a rumba, o som, mas a raiz continua sendo a mesma", detalhou Daiana, antes da marcante apresentação do quarteto feminino.
"A timba (de "Pan con timba") é a variante mais rápida, mais moderna e mais agressiva da salsa cubana, que é a expressão mais genuína do som, que é o gênero que mais nos identifica. A timba inclui ritmos mais complicados, improvisações, solos, momentos de toda a orquestra. E ao mesmo tempo 'timba' significa uma pasta de goiaba, que é como um doce, que se põe dentro de um pão e se come como uma merenda. Então, é um jogo de palavras que dá solução ao gênero musical que está se escutando, mas também a essa merenda rica, gostosa, doce, que dá muita energia", compartilhou a regente.
Da "Suite" ao "Céu Infinito Sertão"
Depois de a orquestra passar pelo Moacir Santos de "Amphibious", Fabio Torres anuncia então uma peça composta por ele especialmente para a formação que teve sua estreia nesta sexta. Por ora chamada "Suite", a obra se estende por pouco mais de 10 minutos, com o propósito de percorrer caminhos musicais de vários Brasis, desde a metrópole até o sertão. Novamente as possibilidades interpretativas da recém-formada orquestra ganham matéria-prima e amplos caminhos para serem demonstradas. Mas é em "Céu Infinito Sertão", também de autoria do pianista, outra inédita feita tendo em mente essa formação, que esse intuito realmente se realiza, com um tema mais amadurecido e definido em melodia e ritmo, com o ouvinte sendo seduzido pela composição e pela performance.
O show ganha, assim, um crescente no final, com a força lírica desse tema e, antes, da comovente, magistral "Valsa de Cora", homenagem de Fabio à mais jovem das duas filhas, presentes na plateia. Uma das melhores músicas do disco "De Cara pro Sol" e também deste concerto de estreia da São Paulo-Havana Orquestra.
Antes do bis com "Pan con timba" recebendo a participação surpresa do violinista Ricardo Herz, o idealizador do projeto fez questão de citar muitos nomes nos agradecimentos e de compartilhar com o público um pouco dos desafios do projeto, até chegar ao palco do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, nesta noite de sexta-feira. Mesmo com dificuldades, porém, um pouco de La Habana desembarcou em "San Pablo", para sorte do público, que tem chance de um bis na noite deste sábado, no mesmo local. E no disco que promete em breve chegar. A história das contribuições musicais entre Brasil e Cuba ganha um novo e belo capítulo. Novos motivos para que possamos vencer distâncias e bloqueios, estar mais próximos, conhecer e reconhecer, dialogar, partilhar, vivenciar mais!
Postar um comentário