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A Análise Selvagem de Alice David: em show no teatro do Dragão, uma grande compositora arrebatou o público. Vivas à música autoral

Alice David, em foto de divulgação, por Letícia dos Passos

 

 
Um show arrebatador, com ótimos arranjos e performances marcantes de todos os músicos, mas acima de tudo com grandes canções de uma artista tão jovem quanto intensa, inspirada, sensível e corajosa. Assim foi a apresentação de Alice David, no último sábado, abrindo o mês de fevereiro, no teatro do Centro Dragão do Mar recebendo um público atento e numeroso, mesmo com todos os desafios do acesso ao espaço e, principalmente, das inúmeras atrações do pré-carnaval, dos bairros à Praia de Iracema.

Quem se programou para ir ao Dragão, depois ou antes da folia, foi premiado com uma apresentação inspirada e inspiradora. São muitos os motivos pelos quais Alice David se destaca no palco, desde o belo timbre de voz, a consciência e a consistência de seu canto, acompanhado com desenvoltura ao violão, passando pelo figurino assinado por Ruth Aragão (vestindo toda a banda), pelo carisma e pela presença cênica, mas principalmente pela verdade que (corajosamente) apresenta ao público, vindo antes a oferecer seu coração, muito mais que fingir sentir a dor que deveras sente. E o amor, também.

Uma compositora de precoce amadurecimento e de muita personalidade, com melodias sinuosamente elaboradas, tecidas sobre harmonias simples, com inventividade mesmo quando partem de progressões de acordes, timbres e ambiências sonoras conhecidas, por vezes desgastadas de tão recorrentes, influências mais evidentes. O diferencial é que, mesmo quando parte desse ponto, Alice tece suas canções com muita propriedade, com outras cores por vezes intuitivas, por vezes esmeradas, quase sempre emocionais e emocionantes. Com um sotaque próprio, uma forma muito, muito pessoal, ela chega a novos lugares. Outras possibilidades. E o público reconheceu, à altura, com muitos, mas muitos aplausos. 




"Análise Selvagem", como espetáculo, disco, projeto foi amadurecido a partir de 2022 no Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes, por Alice David e pelos colegas de palco Gabriel Vieira (guitarra) e Briar Arraguas (contrabaixo), enquanto no show deste sábado a também inquieta e criativa Ayla Lemos se soma ao grupo como outro destaque da apresentação. Com tutoria da cantora e compositora paulista Tulipa Ruiz, no projeto que permite a cada artista ou grupo selecionado escolher um artista com quem dialogar esteticamente, o projeto parte da proposta de um encontro musical com referências à psicanálise. Inicialmente com a gravação de seis faixas para um EP. Posteriormente, também com o show.

No espetáculo, as quatro canções iniciais gravitam em torno de um tema denso - e instigante, não por acaso tratado por muitos no divã da análise: o quanto de amor há no que se convencionou chamar/sentir amor, na acepção afetivo/conjugal do termo. O quanto há de projeção, no ser amado, daquilo que está no ser amante. O quanto há de "amor, de fato"? O quanto há do "querer acreditar que é amor"? "Quando eu conseguir ouvir", ainda estará lá?

Essa sequência inicial do show é especialmente impactante, com "Toda beleza", "Terra sem rei", "Fetiche" e "Quando eu conseguir ouvir" capturando a atenção da plateia e dando o que falar nos curtos intervalos, do show quase sem falas, salvo pelos agradecimentos aos que emprestaram seus talentos à apresentação e ao público que, em noite de tantas atrações na cidade, quase todas de recriações e releituras, optou por sair de casa para ir a um show autoral. E que show!

Em uma das poucas falas da noite, Alice destaca a participação de Fernando Catatau no primeiro single do projeto, "Tocar minha vida e uma canção qualquer", que também conta com clipe e que surgiu no palco como uma canção mais simples, clara e direta, em uma noite marcada por composições mais densas, elaboradas, instigantes, convidando cada espectador/a a um mergulho na reflexão, no olhar e no sentir, na "análise selvagem" proposta por Alice, que assina todas as canções do show, com exceção de "Dádiva ou Dívida", de Iaia do Vovô, interpretada também com muita personalidade por Alice, já perto do fim do show, depois da saborosa "Faça disso o que você quiser" e de "Revirão", duas das mais aplaudidas da noite, assim como o bloco inicial.

Dois PSs, antes do fim: primeiramente, destacar uma vez mais todo o talento e a expressividade que Gabriel Veras, Briar Arraguas e Ayla Lemos aportam ao espetáculo, ao lado de Alice. Todos muito, muito bem, apesar do pouco tempo de ensaio, mas com o entrosamento e a propriedade de quem, muito mais do que tocar como sideman, participou do processo criativo, mergulhando também sobre seus abismos, suas dores e delícias, e vivendo intensamente o que está tocando. Fica o convite ao/à leitor/a para também descobrir os vários universos musicais percorridos por cada integrante desse trio. Como Ayla, com sua carreira solo como compositora, além de baterista e cantora, com o projeto Máquinas, shows com o projeto Miudinho, quinteto Aquas e, em breve, um novo espetáculo ao lado de Thiago Almeida.  

Em segundo lugar, uma curiosidade (sintoma? Casualidade? Convergência?): assistimos ao show de Alice depois de um ótimo debate com uma colega produtora sobre os limites e as possibilidades, os potenciais e a realidade, os sonhos e as dificuldades para a música autoral no Ceará. Na mesa, o "mal-estar da civilização", a dificuldade sentida por vários/as compositores/as - em especial aqueles que não são também intérpretes de obras de outros autores e autoras, e sim cantores exclusivos das próprias canções. Ou mesmo os que compõem mas não são performers, dependendo sempre de outras vozes para que suas criações possam ressoar.  

A apresentação de Alice David ofereceu um sopro de ânimo para essa discussão, mostrando na prática o que quer, o que pode essa língua, na voz dessa "analista amiga minha", como a cantora, compositora, jornalista e ex-coordenadora do Laboratório de Música do Porto Iracema já escreveu, sobre a jovem artista de Itapipoca. "Vejo a análise como um palco. Se submeter à análise é fazer cena. A postura em relação ao inesperado em psicanálise é muito semelhante àquela que um palco musical exige: extrema curiosidade e abertura. Levo muito a sério as duas coisas e acredito que andam na mesma direção", declarou Alice, em entrevista a Mona. Já o disco "Análise Selvagem", nos disse a artista, nos bastidores do teatro do Dragão, após o show, está em fase de gravação e deve estar disponível neste semestre. Sim. Tal qual ensina Marcus Dias, Alice David leva a sério a poesia. Fazendo dela o que quiser.

Mais sobre Alice David

Além de cantora, compositora e instrumentista, Alice David, que reside em Itapipoca e já morou em Sobral, é também ilustradora. Em 2018 participou do Laboratório Ecoar, em Sobral, e gravou suas músicas com o produtor musical Cláudio Mendes, seu então tutor, com quem iniciou sua pesquisa de arranjos. Participou de shows e festivais pelo Ceará, como o Mulheres cantam a Massafeira (Aniversário do Dragão do Mar, 2024), Festival Mi (em 2023 e 2019), Festival Gente é Pra Brilhar (2020), Feira da Música de Fortaleza (2019), Show de Aniversário de Sobral #EuAmoSobral (2018), entre outros.





 




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