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Lana, intérprete de Libras; Ana Paula Vieira, Marieta Rios, Rodrigo Gadelha e Emiliano Aires, no debate na sexta, 9/5, no Festival Ceará Voador |
Na tarde desta sexta-feira, 9/5, na Sala 2 do Cinema do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, foram exibidos, pelo Festival Ceará Voador, os filmes "Topera", dirigido por Rodrigo Gadelha, "Quando éramos outros", de Emiliano Aires, e "Praia dos Crush", de Marieta Rios. Como é praxe no festival, a exibição foi seguida de debate com os realizadores, tendo, desta vez, como mediadora, a professora Ana Paula Vieira, da Universidade de Fortaleza. Confira como foi o debate, em uma transcrição livre, contemplando grande parte das falas dos realizadores, além das perguntas da plateia, inclusive de estudantes da Escola São Rafael, convidados pelo festival.
RODADA INICIAL DE FALAS BREVES, ANTES DA EXIBIÇÃO DOS FILMES
RODRIGO GADELHA
O primeiro passo para o filme foi a vontade de conhecer Fortaleza. Espero que vocês gostem.
EMILIANO AIRES
O meu filme, "Quando éramos outros", é sobre minha família. Nasce de eu encontrar umas fotos antigas guardadas e decidir pegar essas fotos, mostrar pros meus familiares — pra minha mãe, pra minha irmã, pro meu pai — e perguntar o que eles lembram disso. A partir disso, a gente vê como a memória vai embora, como as histórias se confundem. Até os sentimentos se confundem, no futuro. É um filme bem simples. É isso.
MARIETA RIOS
"Praia dos Crush" é um filme de ficção feito numa época, num momento muito tenso: a eleição de 2018. Sou roteirista, sou a diretora. Foi meu primeiro filme independente. Fiquei muito orgulhosa de estar aqui no Ceará Voador, porque é um filme sobre amizade, liberdade e sobre feminismo. Espero que vocês gostem.
ANA PAULA VIEIRA
Feliz com a oportunidade de estar aqui. Já conheço alguns dos filmes.
Feliz de serem ligados a processos formativos — Porto Iracema, CCBJ, Curso de Audiovisual da UFC.
Alegria conversar depois da sessão, saber como os filmes foram feitos e como se relacionam com a cidade onde a gente vive.
...
DEBATE APÓS A EXIBIÇÃO DOS FILMES:
ANA PAULA VIEIRA
São três filmes bem diferentes. O trabalho de um coveiro. Um álbum de família. E essa jovem, uma mulher em transformação, a tensão com a violência de gênero e com a população LGBTQIA+ — não só em Fortaleza, mas no Brasil todo. Fico muito curiosa pra escutar vocês e saber em que momento na trajetória de vocês vocês perceberam que esses elementos pediam um filme.
E a relação com os espaços e processos formativos de Fortaleza. O que é que eles puderam viabilizar? O que é que não seria possível sem esses espaços, processos?
Como é que surge cada filme? O que essa relação com os espaços pode mobilizar?
RODRIGO
Visita ao Cemitério São João Batista. Falecimento da minha bisavó.
Topeira. Personagem.
Escolha por passar tempo no cemitério.
O “Topera”, apesar de ser o nome dele, se relaciona muito com os outros coveiros.
EMILIANO AIRES
O meu filme é um filme da pandemia. Eu tava em casa e fui procurar fotos, achei fotos muito, muito bonitas. Meu pai é fotógrafo. Achei fotos que eu não lembrava, e o filme nasce daí. Eu queria falar sobre várias outras fotos, outras coisas, que no fim, quando eu mostrava pra eles, eles não lembravam de nada ou não tinham nada pra falar. A história da cachorrinha, por exemplo, eu não tinha ideia.
O filme nasce na UFC, nessa cadeira, em 2020, e acaba lá também. Eu fui mostrar pro Osmar, ele criticou, falou que eu tinha que melhorar. E realmente tinha que melhorar.
Nesse ano teve um workshop com a Paula Gaitán, na Caixa Cultural. Os participantes mostravam o que tinham feito. Ela também. E eu me deparei com um filme da Paula, Memória da Memória, filmes de Super 8 antigos que ela tinha. Ela mostrava pra família, e a família comentava. E é lindo o filme, muito sensível, muito bonito. Mostrei pra ela o meu filme, ela gostou e eu percebi que talvez esse filme, que eu tava guardando há muito tempo, tivesse espaço pra sair da gaveta e ir pros lugares. E o festival ter aceitado provou que tinha esse espaço. Foi ótimo. Então essa é a trajetória do filme.
MARIETA RIOS
O roteiro surgiu em 2018. Eu sou fotógrafa, me alistei na Mídia Ninja. Todo aquele momento político de 2018... Depois que terminei o roteiro, fui atrás das escolas — Porto Iracema, Vila das Artes. Na Vila tinha um edital. Acho que eu não passei, mas continuei tentando. Até que consegui um edital de equipamento, que você podia usar os equipamentos. Aí fui atrás da equipe — Marcela Teixeira, minha amiga mais próxima, Evan Teixeira, preparador de elenco.
Eu tô um pouco nervosa, porque não gosto de falar ao microfone. Mas foi um trabalho intenso. Conversei com uma amiga que pesquisa feminismo há muito tempo. E fui na casa dela: “O que você diria pra uma menina que tá num relacionamento abusivo e você precisa dar aquela força?”. As cenas das feministas foram depoimentos reais delas. Isso deixou o filme mais forte.
ANA PAULA VIEIRA
Vendo os filmes de vocês, eu fico muito curiosa pra fazer algumas interferências específicas nesses processos.
No filme do Rodrigo, quais as dificuldades de filmar no ambiente de cemitério? Como foi que vocês estabeleceram relação e confiança com o Topera, a ponto de ele compartilhar tantas coisas no ambiente dele? Uma relação que você falou que foi se dando no dia a dia do cemitério, estando lá várias vezes.
Em relação ao filme do Emiliano, fico muito curiosa de saber como foi o processo de montagem. A relação entre memória e esquecimento. As fotos que surgem, na medida em que as lembranças surgem — ou faltam também. Vai criando um ritmo bem legal. Fico curiosa de saber como foi o processo de montagem. Também o fato de ser blocado, em personagens.
Do filme da Marieta quero saber mais da construção das personagens e dessa relação com a Praia dos Crush. Me parece que a Praia dos Crush é uma personagem também. Questões de ocupação da cidade. Convívio, harmonia, mas também um espaço de dissenso. É um filme que traz episódios de violência, mas o que fica pra mim, sobretudo, é um espaço de escuta e de acolhimento. Fico com muita vontade de ouvir como é que isso foi construído no seu roteiro. E que nuances foram essas, que você pôde fazer o filme ser mais sobre escuta, acolhimento, que sobre violência.
RODRIGO
Sobre os processos de coordenação dessa equipe, organização da coisa toda ali no cemitério, e construção de uma estratégia de aproximação desse lugar e dessas pessoas...
Esse projeto foi construído a partir de um grupo, essa cadeira de documentário que a gente fez no Porto Iracema. A gente se juntou, como grupo, e começou a fazer visitas no Cemitério São João Batista, contactando algumas pessoas. O Topera foi a primeira pessoa que conheci.
A equipe era majoritariamente de homens. Foi difícil no começo, porque o cemitério tem um histórico de muita gente ir filmar lá, mas eles mesmos falaram de as imagens não chegarem lá pra eles. E que tem uma coisa de falar de fantasmas, ser meio sensacionalizado, e essas imagens não chegam pra eles.
Eles têm um jeito deles, meio brincalhão, todo tempo tirando onda um com o outro, e quando você chega, eles começam a tirar onda com você também.
Indo lá, ficando, a gente começou a criar uma relação com a equipe mesmo. Entendendo o que cada um faz, que dia cada um vai.
Pra filmar lá a gente precisou de autorização da Santa Casa, que gere o cemitério, e eles foram super solícitos. A gente explicou direitinho o que era.
Sobre se aproximar deles, a gente acabou criando uma estratégia que não era ir preenchendo um roteiro. A gente sabia que algumas coisas aconteciam no cemitério, e a gente se organizou pra acompanhar momentos específicos, com os coveiros.
Mas a gente não filmou só com os coveiros. Também com visitantes, senhorinhas que cuidam dos jardins, um professor que fazia visitas guiadas. A gente filmou muita coisa lá.
O Topera é a ponta do iceberg, digamos, de tudo que a gente fez. A gente filmou também no Dia de Finados, com duas equipes — uma loucura. Foi uma coisa muito grande, que espero que renda outros materiais.
Mas a partir do momento em que a gente sentou mesmo pra começar a montar, encontrar um caminho que fizesse sentido pro filme, foi ali que encontrei o Topera de novo e a gente entendeu que aquela relação, do começo do filme, era o que fazia sentido pra tudo.
A coisa do carrinho, também, filmada no começo, se tornou esse elemento visual que faz com que o espectador se sinta participando de um dia ali, de um processo. Isso tudo se constituiu mesmo na montagem — claro, acrescida da experiência de estar lá, conhecer pessoas. O Topera é um pedacinho de tudo que a gente viveu.
O trabalho difícil é: daquilo tudo que você viveu, daquilo tudo que você ama, você tirar um pedacinho só.
E o Topera funcionou como filme. A equipe toda se viu. Tem os momentos que eu interajo, apareço falando com ele, enfim. Acho que é isso.
EMILIANO
Pra mim, é meio difícil falar da montagem desse filme, porque ele tem essa questão temporal, de ter sido feito cinco anos atrás e redescoberto agora. Agora eu revi e tentei remontar assim. O que lembro é que tinha muita imagem, eu queria usar muita imagem, mas no fim também é sobre não ter muita imagem. Sobre o processo. Muitas imagens caíram durante a montagem, de ficar menos, de ser mais enxuto, mais sobre aquilo que tá sendo falado, do que tentar, só porque uma imagem é bonita, colocar uma imagem bonita.
Recentemente remontei ele assim, fazendo um novo arquivo no Premiere, e aí percebi quantas imagens eu perdi também nesses cinco anos. Imagens acabaram sumindo em HDs, tipo assim, e tive que me virar pra remontar, usando o arquivo antigo, ou várias outras coisas, pra reencontrar essas imagens. Nunca voltei a abrir essa caixa de polaroides, mas também era outra possibilidade.
Uma montagem em dois tempos diferentes, por isso não consigo falar bem como pensei cinco anos atrás essa montagem, mas também tem que confiar muito nessa montagem. Confiar no meu eu de cinco anos atrás, e que hoje também era pra ser assim.
MARINETE
A Praia de Iracema, eu tenho uma memória afetiva com ela. Sou de 82, vivi uma época de boliche, de memória mesmo, de me descobrir como mulher lésbica, mulher preta, na Praia de Iracema. E algumas coisas que aconteceram no filme, como a cena da lesbofobia, realmente aconteceram. Não foi bem daquele jeito, mas foi uma forma de usar o cinema como uma militância mesmo, e colocar pra fora. Tentei usar uma câmera subjetiva. Não ficou bem como era pra ser, mas acho que deu pra entender uma verdade ali. Mas acho que deu pra entender. Não aparece a cara do agressor. Só as meninas. O menino colado em mim, o Evan também ajudou muito nisso, porque ele tava gritando aqui no meu ouvido, e elas tavam debatendo com a câmera. A gente não tinha recurso, não tinha equipamento. A gente fez o que a gente pôde, mas no final deu certo.
PERGUNTAS DA PLATEIA:
1. KIMBERLY
Boa tarde. Meu nome é Kimberly. Minha pergunta é pro Rodrigo. Quando assisti ao teu filme, fiquei pensando que a gente demora muito pra falar sobre a morte, quando começa a vida. Acho que só fui falar quando tinha 16, 17 anos. E aí é muito doido pensar que tu ficou íntimo de uma pessoa que é íntima do fim. Isso transformou alguma coisa em ti? Como tu vê a morte, ou como tu pensa agora a vida? Se isso teve algum peso depois do filme?
RODRIGO
Cara, acho que assim... na verdade, acho que o filme veio num processo todo de busca, de certo contato. O ato de ter conhecido esse lugar exatamente no momento em que eu perdi minha bisavó... aquilo me deixava mais perto da história, do tempo, da passagem. Ela era uma senhora muito lúcida, tinha muitas histórias, e acho que dela herdei essa coisa de contar histórias e tal. Conhecer o cemitério e perceber que ele é uma espécie de cidade, do que ficou, do que foi esquecido, daquilo que não existe mais, e famílias que não existem, eu tinha muito interesse de entender como esses lugares conseguem manter aquilo que é memória, mas de ninguém mais. Só porque o espaço tá ali, a coisa assim, existe.
Mas no processo todo a gente descobre que tem gente que vive assim, no dia a dia, que tá lembrando o que vai fazer mais tarde, que tem um trabalho aqui, outro ali, e que conserta coisas e tal. Tinha uma brincadeira e tal...
Mas quando se permitiam... ninguém ali, nenhum coveiro quer falar sobre a morte. Não é um papo que se tem. “Ah, porque meu pai faleceu, estou em luto...” Isso é uma coisa que eles meio que abafam entre si.
Mas nesse processo de estar junto, de conversar, ir entendendo onde ele se posiciona com relação ao luto alheio, ao próprio luto envolvido no processo do trabalho, acho que me fez pensar que a morte também é estar. Também é permanecer. Além de ser uma despedida da vida, de tudo, ela é também uma forma de se fazer parte do espaço da vida, dos lugares, de uma história, enfim. É isso. Acho que foi um filme que, fazer ele, me tocou muito nesse sentido — e também conhecer essas outras pessoas, mano, não só o Topera, mas tudo que a gente conheceu nesse sentido, o que conta sobre a morte, sobre a memória, e sobre o cinema também.
O cinema se associa a essa vontade de imprimir no espaço a memória. Acho que tem a ver com isso também. Foi um aprendizado que não vou poder nunca resumir em palavras, mas espero que o filme possa ser um pouquinho essa faísca, pra resumir isso. Obrigado pela pergunta.
2
MARÍLIA – ESTUDANTE DA ESCOLA SÃO RAFAEL
O que você sentiu quando fez a cena do cemitério, a da cova?
RODRIGO
Essa cena, na verdade, a gente não tinha programado que ia estar no filme. A gente pode dizer que foi uma sorte. Eu, quando comecei a filmar lá, encontrei uma pessoa que eu conhecia, e ela permitiu que eu filmasse dois processos: um de exumação, e outro do enterro. Um outro corpo pra ser enterrado nesse jazigo.
Essa cena foi um choque pra gente também, na hora. Acho que ninguém tá esperando ver os ossos de alguém, assim, tão de cara, mas mostrar isso foi também uma forma de mostrar que isso também é parte do dia a dia comum de uma pessoa. Por mais que pra gente seja uma coisa diferente, isso é parte do dia a dia. Uma coisa comum. Acontece todo dia no cemitério. Sei que é um pouco chocante.
É aquilo que o próprio Topera fala: “Um dia vai todo mundo caber nesse saquinho.”
Não importa se for a pessoa mais rica, mas um dia vai caber nesse saquinho.
Acho que o próprio Topera tem medo, de um dia ir pra esse saquinho.
Mas isso também é parte da vida, parte de um trabalho, da relação que a gente tem com a morte.
3
Eu queria fazer duas perguntas, tá ok?
Saber se vocês pretendem fazer outro filme com tema de morte ou contando a história de alguma pessoa, da vida dela?
RODRIGO
Eu pretendo fazer mais alguns filmes, se Deus quiser. E sim, contando histórias de pessoas.
Por enquanto não tenho nada pra anunciar aqui, não.
Mas é a mensagem que eu queria passar até pra vocês:
Uma câmera na mão é uma forma de você pensar sobre histórias, imaginar histórias.
Queria fazer esse convite a vocês, que vocês também procurem pensar em filmes de vocês, ideias de vocês.
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