As cores das saias de cetim confeccionadas artesanalmente por Solange Ramirez e quatro mulheres da comunidade mudaram as rodas de carimbó de Soure, cidade na Ilha do Marajó, no Pará. Quando precisou fazer um figurino para si e para outros jovens dançarem no lançamento do CD "Obra Prima, Marajó", do amigo Ailton Favacho, poeta e compositor da região, Solange adquiriu o tecido para produzir as vestimentas, por ser pouco o recurso financeiro, resolveu comprar o tecido mais barato, que encontrou na é poca: o cetim, tecido que apresenta brilho em seu aspecto.
A novidade causou estranhamento inicialmente, despertando muitas críticas. Houve quem dissesse que ela "acabou" com o carimbó. "Foi triste pra gente! Isso há 12 anos, aqui em Soure, era como se fosse uma ofensa, porque a roupa de carimbó tinha que ser da chita tradicional. Aquilo me deu uma tristeza no coração, mas ficamos felizes por chamar a atenção", relata.
Mas, por outro lado, em pouco tempo, mais e mais pessoas foram lhe encomendando as "saias iluminadas", e a prática, critério da verdade, lhe deu razão. Dos pedidos para poucas amigas, as demandas foram se multiplicando. Ela precisou então fazer de sua casa uma oficina para a produção das saias, contando com o apoio de colegas, gerando renda para a comunidade e ajudando a tornar autossustentável o Coletivo Marafênix, "sem precisar estar pedindo apoio de órgão público", aponta a mulher que, também professora concursada, de vida corrida, dando aula em três escolas, se orgulha da independência e de poder, com os recursos amealhados com a venda das saias, manter o grupo e um trabalho voluntário pelo qual, há 12 anos, já passaram muitas crianças, adolescentes e jovens.
Atualmente o projeto beneficia 25 crianças da região, e conta com as próprias meninas do grupo (Valentina Alves, Ana Alice Silva, Maria Marciel e Maria Gabriela Abdon) para levá-lo adiante. Compartilhando para a novíssima geração as tradições do carimbó - especialmente as vestimentas e a dança, Solange tem plena certeza de que essa cultura ancestral será sempre vivenciada. "As pessoas daqui da região sabem que as saias que brilham, confeccionadas com essa mistura de tecido tradicional e o cetim, são as saias criados ao estilo do grupo Marafênix", orgulha-se.
Solange Ramirez encantou o público e os participantes na oficina de dança de ritmos marajoaras, no Festival Choro Jazz, que deu início à etapa Soure na última terça-feira, 8/7, com as aulas de música realizadas em pleno Terminal Hidroviário da cidade, tendo por paisagem as barcas que chegam de quando em quando. A sala de embarque foi transformada em sala de aula - ou de partilha - para mestres como Solange Ramirez, a incrível Milene Tavares, também de Soure, das percussões, e os visitantes ilustres Filó Machado e seu neto Felipe Machado, Rogério Caetano, Henrique Cazes, Silvério Pontes, além dos jovens cearenses Tâmara Lacerda (violão e voz) e Ranier Oliveira (acordeom e voz), do Cariri.
E Solange transformou o terraço de embarque em palco para as rodas de carimbó, com direito a levar figurino para todas as participantes (apenas um homem se prontificou a dançar) e a unir muita gente em uma grande roda de admiração pelas cores, movimentos, sons, tradições, ensinamentos. "Eu gosto sempre muito de partilhar o que aprendo. Eu não gosto de aprender uma coisa e guardar pra mim. Eu prefiro ensinar, partilhar... ", ressalta.
A casa da dançarina, artesã, figurinista e professora - de dança, de história, de tradição e de Ensino Fundamental e Médio - tem hoje as portas abertas para, e que devido as demandas, convidou mais quatro colegas para ajudá-la e assim, conseguem manter a confecção das saias.
"A gente montou um sistema meio como de uma cooperativa. Cada uma faz uma parte do trabalho. São mulheres da comunidade. A casa fica aberta, e cada uma faz seu horário, com toda a confiança", diz, sobre o ateliê onde o trabalho em grupo já permite que haja um estoque para pronta entrega a quem visita o local ou, após assistir a uma apresentação, deseja adquirir uma das saias, e levar para longe. Um estoque também possível devido aos tempos de pandemia, em que as apresentações pararam, as encomendas rarearam, mas o trabalho na produção das saias multicores continuou.
Atualmente Solange dedica ao trabalho voluntário com as crianças duas vezes durante a semana, nas duas noites em que não está em sala de aula. "A cada ano chega mais criança... Esta já é a quinta geração, desde que se conheceram na escola de Ensino Fundamental e Médio e iniciaram o grupo. E tem muita criança, muita mãe, que não vai até lá pedir para participar, porque acha que é pago, porque vê tudo organizado e pensa que precisa pagar. Mas é gratuito. Nosso trabalho é voluntário", demarca.
"É uma luta grande, que às vezes a gente sente o peso, porque os desafios são inúmeros. Já pensei em parar, muitas vezes. Mas o afeto pelas crianças é maior e o pertencimento à nossa cultura é âncora para que possamos seguir em frente, ao menos até agora". Além de mestre dos passos de carimbó, Solange segue girando, em movimento, fazendo a diferença na vida dessas famílias e na continuação dessa arte. É carimbó, é carimbó!
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